Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Leite é soda, como diria Falomão


     Em outubro de 2007, alguns produtores de leite mal intencionados adicionaram soda cáustica e água oxigenada ao produto que vendiam à indústria, objetivando, é óbvio, auferir mais lucros. As vaquinhas não tinham nada a ver com isso. O assunto foi vastamente divulgado e comentado na mídia, gerando indignação no país inteiro contra os maus produtores. Algumas indústrias de peso compraram leite desses produtores, mas alegaram desconhecer o fato de que o produto estaria adulterado.
     Lembrando daquele comercial de uma dessas indústrias, em que crianças graciosas, graciosamente fantasiadas de animaizinhos, cantavam uma alegre musiquinha enaltecendo as qualidades do leite, resolvi fazer uma brincadeira: editei o comercial, mudando o seu final, e postei-o no YouTube, naquela época.
     Não esperava que tivesse a repercussão que teve e continua tendo. O vídeo recebeu, até agora, 29 comentários, alguns criticando-o; muitos elogiando-o. Há exatamente um ano, teve um cara que escreveu assim:

Sem dúvida o protesto contra o leite contaminado é válido. A única observação é que esse tipo de vídeo é visto quase sempre por crianças. Você não ia querer estar no meu lugar ao ver o susto que meu filhinho tomou ao aparecer essa caveira!! Sacanagem!!!.
     Ao que respondi:

Me desculpe se a minha montagem do comercial da Parmalat assustou seu filho. Ocorre que nas informações do vídeo está escrito: 'sátira do comercial dos mamíferos da Parmalat, depois de decoberta a fraude do leite, com adição de soda cáustica e água oxigenada'. Se seu filho estava sozinho fazendo pesquisas no YouTube, não deve ser tão pequeno assim; se estava com o pai, me pergunto: por que um pai assistiria a uma coisa dessas junto a seu filho pequeno?.
     O último comentário foi postado há três semanas e diz assim:

tadinhas das crianças que têm os pais que não leem sinopse dos videos....
     O mais impressionante, contudo, é a quantidade de exibições do vídeo: 89436 (até este exato momento).
     Ontem, a minha montagem teve um desdobramento surpreenden-te, acredito que pela quantidade de exibições: recebi um email do The YouTube Team dizendo que meu vídeo tinha se tornado tão popular que eu estava apto a entrar no programa de parceria da empresa e ganhar dinheiro com as exibições do material. Ou seja, o YouTube me propôs inserir propagandas na página do meu vídeo. A cada acesso eu ganharia alguma coisa. Olhei as regras mas vi que não estou tão apto assim. Há uma série de condições — justas, diga-se de passagem — para entrar no programa.
     Se você entrar no YouTube e procurar por “novo comercial da parmalat”, o primeiro que vai aparecer é o vídeo que fiz. Em todo caso, leia a sinopse pra ter certeza e não assista junto a crianças menores de 21 anos.
     Se preferir, assista diretamente aqui, mas tire as crianças da sala!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Um sonho a dois


     Quem me acompanha desde o início deste blog deve lembrar que o título da primeira postagem foi “Dia especial”. Escrevi, então, que era um dia especial, entre outras razões, porque casava-se meu filho mais novo. No dia posterior ao do casamento, escrevi “O dia seguinte”, em que contei como foram os acontecimentos daquele ato solene de união entre duas pessoas (até um tempo atrás se completava esta frase com “de sexos diferentes”). Falei também das minhas emoções, que foram tantas (mas nada a ver com as do Roberto Carlos), e dos nós que, em diversos momentos, apertaram-me a garganta.
     Tive acesso, agora, ao DVD em que estão registrados todos aqueles momentos, e quero compartilhar um deles com meus leitores (olha a pretensão do plural!). O vídeo apresentado abaixo assinala o momento em que os noivos, após a cerimônia religiosa, entraram no ambiente onde aconteceria a festa e se apresentaram aos convidados cantando Um sonho a dois, música originalmente interpretada por Roupa Nova e Cláudia Leite.


sábado, 19 de dezembro de 2009

Futebol ao sol e à sombra



     Vou reproduzir nesta postagem pequeno trecho de um livro de Eduardo Galeano: Futebol ao sol e à sombra. O original é de 1995, mas a edição que estou lendo é atualizada, incluindo as copas de 1998 e 2002. É uma edição de bolso da L&PM que, na última capa, diz o seguinte:

[...] Eduardo Galeano penetrou nas profundezas da história e das histórias que se passam dentro e fora das quatro linhas. Construiu este livro como um verdadeiro monumento à paixão.
[...] Não é preciso ser um apaixonado pela bola para apreciar esta saga.
     Em pequenos textos, o autor fala tudo sobre futebol: desde o jogador, o goleiro, o árbitro, o técnico, o gol, a torcida, o campo, até interesses políticos e financeiros. O trecho que reproduzo é sobre os jornalistas: repórteres, narradores e comentaristas. Escolhi esse trecho porque, além de ser interessante — como todo o livro —, um dia fui ligado profissionalmente a emissoras de rádio, e também porque nasci irmão do célebre radialista Milton Ferretti Jung, há 45 anos locutor do correspondente jornalístico da Rádio Guaíba, que já narrou três copas do mundo e escreve crônicas esportivas para a mesma emissora. Na escolha do tema desta postagem também quero homenagear o filho homônio do meu irmão — e, coincidentemente, meu sobrinho —, Milton Ferretti Jung Jr., âncora da CBN São Paulo, premiado este ano pelo Prêmio Comunique-se como o "Melhor Âncora de Rádio".
     Vamos ao Eduardo Galeano.

Os especialistas

     Antes da partida, os comentaristas e os cronistas formulam suas perguntas desconcertantes:
     — Dispostos a ganhar?
     E obtêm respostas assombrosas:
     — Faremos todo o possível para obter a vitória.
     Depois, os locutores tomam a palavra. Os da televisão acompanham as imagens, mas sabem muito bem que não podem competir com elas. Os do rádio, ao contrário, não são recomendados para cardíacos: esses mestres do suspense correm mais que os jogadores e mais que a própria bola, e em ritmo de vertigem narram uma partida que pode não ter muita relação com o que se está olhando. Nessa catarata de palavras, passa roçando o travessão o disparo que se vê roçando o mais alto céu, e corre iminente perigo de gol a meta onde uma aranha tece sua teia, de trave a trave, enquanto o goleiro boceja.
     Quando conclui vibrante jornada no colosso de cimento, chega a vez dos comentaristas. Antes, os comentaristas interromperam várias vezes a transmissão da partida para indicar aos jogadores o que deviam fazer, mas eles não puderam escutá-los porque estavam ocupados em errar. Estes ideólogos da WM contra a MW, que é a mesma coisa mas ao contrário, usam uma linguagem onde a erudição científica oscila entre a propaganda bélica e o êxtase lírico. E falam sempre no plural, porque são muitos.

A linguagem dos doutores do futebol

     Vamos sintetizar nosso ponto de vista, formulando uma primeira aproximação da problemática tática, técnica e física do cotejo que foi disputado esta tarde no campo do Unidos Venceremos Futebol Clube, sem cair em simplificações incompatíveis com um tema que sem dúvida está exigindo análises mais profundas e detalhadas e sem incorrer em ambiguidades que foram, são e serão alheias à nossa pregação de toda uma vida a serviço do amor ao esporte.
     Seria cômodo para nós ignorar nossa responsabilidade, atribuindo o revés da esquadra local à discreta performance de seus jogadores, mas a excessiva lentidão que indubitavelmente mostraram na jornada de hoje, na hora de devolver cada esférico recepcionado, não justifica de nenhuma maneira, entenda-se bem, senhoras e senhores, de nenhuma maneira, semelhante desqualificação generalizada e, portanto, injusta. Não, não e não. O conformismo não faz parte do nosso estilo, como bem sabem os que nos seguiram ao longo de nossa trajetória de tantos anos, aqui em nosso querido país e nos cenários do desporto internacional e inclusive mundial, onde fomos convocados a cumprir nossa modesta função. Portanto vamos dizê-lo com todas as letras, como é nosso costume: o êxito não coroou a potencialidade orgânica do esquema de jogo desta esforçada equipe, porque ela pura e simplesmente continua sendo incapaz de canalizar adequadamente suas expectativas de uma maior projeção ofensiva até o âmbito da meta rival.
     Já o dizíamos no domingo próximo passado e assim o afirmamos hoje, com a cabeça erquida e sem papas na língua, porque sempre chamamos pão de pão, e queijo de queijo, e continuaremos denunciando a verdade, doa a quem doer, caia quem caia e custe o que custar.



GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução: Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. 232 p.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A cinza vulcânica e os palavrões



     Um dia desses encontrei um conhecido que não via há algum tempo. Antes desse encontro, tinha falado com ele no final de 2008. Na ocasião ele estava partindo para uma viagem de aventuras pela América do Sul. Era, então, um cara saudável. Agora, custei a reconhecê-lo: magro, meio curvado, caminhando devagar, barba por fazer, cabelos desgrenhados. Depois do aperto de mão, do abraço e das tradicionais perguntas sobre as famílias, pôs-se a contar sobre a viagem que havia feito. Com muito custo narrava suas aventuras por essa América. Estava muito ofegante e fazia pausas entre uma frase e outra para recuperar o fôlego. Não resisti e perguntei onde tinha ficado aquela saúde que esbanjava tempos atrás. Foi da resposta que surgiu o tema desta postagem.
     Em fevereiro deste ano, meu conhecido estava no sudeste da Colômbia, no Departamento de Nariño, quando o vulcão Galeras entrou em erupção. Em vez de sair de lá, ficou para registrar o fenômeno em fotos. Cinco dias depois, estava no Chile. Seu objetivo era fotografar a erupção de um outro vulcão, o Chaitén, que fica 1.200 km ao sul de Santiago. Virou um caçador de vulcões em erupção.
     Perguntei o que isso tudo tinha a ver com sua aparência e sua falta de fôlego. Fiquei, então, sabendo que ele fora acometido de uma doença pulmonar causada pela aspiração de cinzas vulcânicas. Ele não conseguiu dizer o nome da doença nem o nome que se dá a pessoa por ela acometida. Eram tantas iterrupções para ganhar fôlego que resolveu pegar caneta e papel e escrever. Confesso que, agora, quando fui transcrever os nomes, vali-me do Google para poder usar o recurso copiar-colar. A palavra que define o portador da doença é, atenção, lá vai:

pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico!

     E o nome da doença é

pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose.

     Tratam-se da primeira e da segunda maiores palavras da língua portuguesa. A primeira com 46 letras; a segunda com 44.
     Ainda bem que não é uma doença comum. Fico imaginando um médico dizendo a seu paciente:

“Você adquiriu uma pneumoultra... Desculpe! Pneumoultrami... croscopico... Perdão! microscopicossilicovulcano... vulcanoco-niose! Entendeu?”
     Quem sofre dessa doença corre o risco, por tabela, de ficar com outra que ocupa o terceiro lugar em quantidade de letras na língua portuguesa: hipopotomonstrosesquipedaliofobia. Esta é uma doença psicológica característica de quem tem medo irracional (ou fobia) de pronunciar palavras grandes ou complicadas. Contém 33 letras. Ou seja, o sujeito que tem as duas doenças está impossibili-tado de pronuncir seus nomes.
     O que é o progresso, né?! Quando eu era (mais) jovem, a maior palavra da língua portuguesa de que eu tinha conhecimento era anticonstitucionalissimamente. Este advérbio se refere a algo feito de maneira contrária ao que dispõe a constituição de um país. Tem 29 letras e, hoje, é a quarta maior palavra do nosso idioma. O quinto lugar, com 28 letras, é ocupado por oftalmotorrino-laringologista (especialista em doenças dos olhos, ouvidos, nariz e garganta); e o sexto, inconstitucionalissimamente (advérbio que designa o mais alto grau de inconstitucionalidade), com 27 letras.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O cara disse: merda!


Eu não quero saber se o João Castelo é do PSDB, eu não quero saber se o outro é do PFL, eu não quero saber se é do PT. Eu quero saber se o povo está na merda e eu quero tirar o povo da merda em que ele se encontra. Esse é o dado concreto.
Luiz Inácio "o cara" da Silva


     Que merda! O Lula falou merda! O presidente falou merda! Não me entenda mal: ele não falou merda, ele disse merda, ou melhor, também não disse... Tá difícil de entender? Pois é... Que merda! Vou tentar me fazer entender: o Lula pronunciou a palavra merda. Ufa! Consegui!
     Viram como é difícil falar merda, ou melhor, falar "em" merda. Afinal, o que é e o que significa merda?
     É muito relativo. Depende sobre o que se está falando, de quem se fala, como se fala, onde, etc. A palavra em questão é um substantivo feminino que significa, em sua primeira acepção, matérias fecais, excremento, dejeto. Por extensão de sentido, merda também é acúmulo de lixo, de sujeira, imundícia, porcaria, sujidade. Em linguística, o uso do vocábulo merda é um tabuísmo. Mas que merda é esta?
     Tabuísmo (tabu + -ismo), substantivo masculino, é uma palavra, locução ou acepção tabus, consideradas chulas, grosseiras ou ofensivas demais na maioria dos contextos. São os chamados "palavrões" e referem-se, geralmente, ao metabolismo (cagar, mijar, merda), aos órgãos e funções sexuais (caralho, pica, boceta, colhão, foder, etc.), incluem ainda disfemismos pesados como puta, veado, expressões tabuizadas (puta que pariu) etc. Já sei, você não sabe o que é disfemismo. É uma expressão grosseira ou desagradavelmente direta, em vez de outra, indireta ou neutra. Entendeu?
     Para explicar tabuísmo deve-se, ainda, explicar tabu e ismo. Tabu vem do polinésio tabu e significa sagrado, intocável, proibido. Tabu, substantivo masculino, é uma proibição convencional imposta por tradição ou costume a certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que não pode ser violada, sob pena de reprovação e perseguição social. Trata-se de uma interdição cultural e/ou religiosa quanto a determinado uso, comportamento, gesto ou quanto à linguagem.
     Por sua vez, ismo é um sufixo nominal (formador de nomes): doutrina, escola, teoria ou princípio artístico, filosófico, político ou religioso'; 'ato, prática ou resultado de'; 'peculiaridade de'; 'ação, conduta, hábito, ou qualidade característica de'; 'afecção', 'quadro mórbido', 'condição patológica (causada por)'; 'conjunto das características comuns a certo povo, ou civilização'; 'expressão, ou palavra própria de determinada língua, ou região, ou povo'; 'proteção, patronato'; 'modalidade ou prática esportiva'.
     O uso da palavra merda poderia também ser classificado como um plebeísmo: modos, usos, frases, palavras, de uso exclusivo da plebe.
     Mais uma coisinha: os meios de comunicação, em geral, disseram que Lula disse um "palavrão". O termo tanto pode significar uma palavra grande e difícil de pronunciar como uma palavra obscena ou grosseira; palavrada, pachouchada ou, ainda, termo enfático ou empolado; palavrada.
     Tudo que está dito acima, com exceção dos dois primeiros parágrafos, está nos dicionários. Podem conferir.
     Em questões de linguística, de lexicografia, de terminologia, estamos conversados. Mas em questões políticas? O que significa merda num discurso político?
     Pois é. O Lula pronunciou um palavrão: merda! Que merda! Significa que deu mais um motivo para os tabuístas de plantão se manifestarem. Só isso. O que será que aconteceria se Berlusconi dissesse "schifezza"? E o Obama, dizendo "shit" ou "crap" num discurso? A Angela Merkel falaria em "mist"? Na língua do Sarcosy ficaria mais parecido: "merde".
     Mudando de saco pra mala, no mesmo dia li nos mesmos (alguns) meios de comunicação que noticiaram a merda do Lula as seguintes notícias:

Eleito um dos 100 personagens do ano pelo jornal espanhol "El País", o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tema de um artigo assinado pelo primeiro-ministro espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, com o título "O homem que surpreende o mundo". No texto, Zapatero diz que sente "profunda admiração" por Lula e faz diversos elogios ao colega brasileiro (http://www.elpais.com/articulo/internacional/hombre/asombra/mundo/elpepuint/20091211elpepuint_1/Tes).

Aprovação de Lula cresce na pesquisa CNI/Ibope. 72% dos brasileiros avaliam o governo como bom ou ótimo. 83% aprovam a maneira como o presidente Lula dirige o país.

Avaliação positiva do presidente Lula sobe para 78,9%, diz CNT/Sensus. No último levantamento, em setembro, índice era de 76,8%. Aprovação do governo federal sobe de 65,4% para 70%.

     E olha só o que "o cara" disse:

"Lógico que eu falei um palavrão aqui. Amanhã os comentaristas dos grandes jornais vão dizer que o Lula falou um palavrão. Mas eu tenho consciência de que eles falam mais palavrão do que eu todo dia e tenho consciência de como é que vive o povo pobre desse país e é por isso queremos mudar a história desse país".

     O que será que ele quis dizer com "eles falam mais palavrão do que eu todo dia"? Que falam merda diariamente?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Penitência budista


Assim como as pedras preciosas são tiradas da terra, a virtude surge dos bons atos e a sabedoria nasce da mente pura e tranquila. Para se andar com segurança, nos labirintos da vida humana, é necessário que se tenham como guias a luz da sabedoria e virtude.
Sakyamuni

     Eu estava zen desde domingo. Por isso não escrevi antes sobre a aventura que narro hoje.
     Pois foi no domingo, dia 06, que resolvi visitar o templo budista Khadro Ling, a 7km de Três Coroas, numa região circundada por Igrejinha, Taquara, São Francisco de Paula, Canela e Gramado. Para situar o leitor: o Khadro Ling é a sede do Chagdud Gonpa Brasil, uma organização sem fins lucrativos destinada ao estudo e prática do Budismo Tibetano. Uma comunidade de praticantes budistas mora no local e em suas terras fica o primeiro templo tibetano tradicional da América Latina.

     Em 1991, Chagdud Tulku Rinpoche visitou o Brasil pela primeira vez. Em 1994, foi convidado para vir ao Rio Grande do Sul. Encantado com a beleza da serra gaúcha e com o interesse dos praticantes pelo budismo, Rinpoche procurou terrenos na região para estabelecer um centro. Em 1995, Rinpoche mudou-se para onde hoje está o Khadro Ling. O centro contava apenas com poucas construções. Em novembro de 2002, durante um retiro com a presença de 250 praticantes de todo o país, Rinpoche morreu após dois dias de ensinamentos e intensa prática espiritual. Incansável, ele ensinou até tarde da noite de sábado, 16 de novembro. Sua morte aconteceu na madrugada do dia 17 de forma extraordinária. Por seis dias, ele permaneceu em um estado de profunda meditação antes de a consciência deixar seu corpo.
     Tudo sobre o Khadro Ling pode ser visto em kl.chagdud.org, fonte do parágrafo acima.
     Mas vamos à aventura que me deixou zen.
     Surgiu a oportunidade de visitar o templo em uma excursão de um grupo de praticantes de Ioga. Não sou muito afeito a excursões, mas, enfim, era uma forma de conhecer o Khadro Ling e, ainda por cima, interagir com pessoas que não conhecia e, especialmente, me divertir. O ônibus sairia do local marcado às seis da manhã. Deveríamos estar no templo às 8h00 para assistir a uma cerimônia. Acordei às 4h30 para chegar a tempo. Fomos eu, minha mulher, uma irmã dela e minha sogra. Chegamos às 5h45; o ônibus não. Começou bem. O motorista precisou ligar para o celular da organizadora para saber como chegar ao local do embarque. Senti o drama.
     Quando o ônibus surgiu na esquina tive a pior das impressões sobre ele. Era um caquinho velho, provavelmente refugo de uma empresa grande, que fora comprado por essa "Qualquer Coisa Tur" da vida. Enfim, era o que tinha, a aventura já estava paga e não acordei às quatro e meia da madruga de um domingo pra desistir. Nos acomodamos fazendo cara feia para o cheiro de mofo e dos odores que vinham do sanitário do veículo.
     Já eram 6h20 quando o bólido da "Qualquer Coisa Tur" partiu. O ronco do motor até que era bonitinho. Parecia bem reguladinho. Aquele ruído contínuo do motor, o apito grave dos pneus contra o asfalto e meu sono me fizeram cochilar.
     Despertei desconfiado que o motorista estivesse perdido, pois diminuía razoavelmente a velocidade em cada entroncamento, como que tentando adivinhar pra que lado deveria seguir. Num determinado momento parou num posto de combustíveis e desceu. Da janela vi-o falar com um frentista, que lhe apontava uma direção e girava a mão pra lá e pra cá, esquerda, direita, indicando mudanças de rumo. Seguimos por mais um pouco de asfalto até entrar numa estradinha estreita de chão batido, em meio ao mato e com barrancos dos dois lados. Ah! E, ainda por cima, era subida. O ronco do motor foi ficando mais grave e forte. Terceira, segunda... primeira... Paramos. Sem explicações, o motorista começou a dar ré no ônibus. Nos entreolhamos assustados: imagina descer de ré aquele caminho! Mas ele devia saber o que estava fazendo. Andou mais um pouco de costas num terreno plano, parou, engatou uma primeira e foi firme. Acelerou tudo, colocou uma segunda... primeira... o ônibus começou a perder força e puf! Apagou o motor e não mais pegou. Quando desci ouvi o motorista falando ao celular com alguém da empresa, dizendo com o vocabulário dele que a subida era muito íngreme e que o carro perdeu a força.
     Seguimos a pé para a frente, sem saber por quanto tempo andaríamos naquela lomba empoeirada. Acho que caminhamos um quilômetro e chegamos a uma bela estrada asfaltada, a RS-20. Havia uma parada de ônibus cujo número era — pasme — 171! Parte do grupo seguiu estrada acima; a outra ficou parada na parada. A esperança destes logo foi recompensada com a chegada de um coletivo intermunicipal. A organizadora perguntou ao motorista se o ônibus nos deixava perto do templo e a resposta foi positiva. Embarcamos. Mais adiante o ônibus parou para que embarcassem os que se aventuraram a seguir a pé pela estrada. Seis paradas depois estávamos na parada 177, à beira do caminho que leva ao Khadro Ling.
     Éramos 34 pessoas: 32 mulheres e dois homens (um deles era eu e o outro, o marido da organizadora); 30 com mais de 50 anos e duas com menos (uma era filha da organizadora). Metemos o pé na estrada sem saber por quanto tempo e por quantos quilômetros.
     Apesar de nublado, o domingo estava mormacento. Certamente já tínhamos perdido a cerimônia, pois já passava das oito horas. Subíamos apreciando a bela paisagem longínqua, o vale onde se incrustam as cidades de Igrejinha, Parobé e Três Coroas. Pela organizadora ficamos sabendo que o motorista do ônibus já havia conseguido pedir socorro e que estava esperando um mecânico vindo de Porto Alegre. Já que estávamos lá não precisávamos de ônibus. Nossa preocupação era com a volta e, se já tinha socorro a caminho, tudo bem. Era relaxar e gozar.
     No desenho abaixo o caminho que percorremos a pé.


     Chegamos ao templo às nove horas. Não vou discorrer aqui sobre o local, só que tive a oportunidade de demonstrar minha fé e dedicar lamparinas a uma pessoa que me é muito cara. O relato é sobre a aventura de ir até lá naquelas condições.
     Percorremos todos os cantos da área onde há dois templos, estátuas e outras instalações. Tínhamos um almoço marcado em um restaurante de Três Coroas. No local não tinha nem lanche, só refrigerantes na loja do templo. A última notícia que tivemos sobre o ônibus foi às 11 horas. Dizia que o mecânico já havia chegado e estava trabalhando no conserto. Depois disso, o motorista desligou o celular e ficamos sem comunicação. Nada auspicioso.



     Enquanto isso, a organizadora contatou o restaurante que, pra não perder um grupo de 34 pessoas, ficou de conseguir um ônibus ou uma van para nos buscar. Às 12h30 resolvemos fazer o caminho de volta (a linha amarela do esquema acima). A pé de novo. A proposta era esperarmos no meio do caminho pela condução que o restaurante, depois de muitas tentativas, não conseguiu. Antes de sabermos que não se conseguiria essa condução, enquanto estávamos parados no meio do caminho, acabei quebrando um galho. Me recostei num grosso galho, caído, que só suportou meu peso por um tempo, levando-me ao chão em seguida, em câmera lenta, na frente de todo mundo. Resolvi ficar sentado no chão. Como se isso não bastasse, encostei a parte interna do braço num bicho cabeludo, que me queimou. Uma senhora prevenida me emprestou uma pomada milagrosa. E fomos indo, indo, indo, indo estrada de chão batido afora. De vez em quando eu olhava pesaroso para meu sapatênis Ferracini.
     Chegamos novamente naquela estrada em que descemos do ônibus de linha na vinda. Depois de inúmeras tratativas, uma moradora da esquina da estrada asfaltada com a estrada de chão batido conseguiu um micro ônibus que nos levaria a Igrejinha. De lá deveríamos pegar um ônibus para Porto Alegre na rodoviária. Quando sentamos neste micro, adivinhe quem apontou na estrada, lépido e faceiro? O ônibus em que viemos até metade do caminho e que nos deixou na mão. Como este nos levaria direto a Porto Alegre, embarcamos nele e viemos, depois que a organizadora deu R$ 100,00 para o cara do micro ônibus pelos serviços que nem chegaram a ser prestados. Mas tudo bem, foram descontados da empresa do ônibus que estragou.
     A aventura poderia ter terminado por aí. Mas não. Eu estava louco pra chegar em casa pra comer e ainda a tempo de assistir à rodada final do Brasileirão. Aquele mulherio do grupo — agora reduzidas a 28, porque duas delas embarcaram num ônibus de linha quando estávamos parados na beira da RS-20 — ainda quis parar em Igrejinha pra comprar sapatos. Os mesmos sapatos que têm em Porto Alegre, com os mesmos preços e as mesmas condições de pagamento. Não vou entender nunca! Foi só aí que me esqueci dos ensinamentos de Buda e me irritei. Como eu era o único homem, já que o outro era o marido da organizadora, dancei...
     Cheguei em casa a tempo de ver o Flamengo festejar o campeonato. Menos mal.
     No budismo sempre há uma lição para tudo. Deste passeio tirei uma: nunca mais me convidem mais para excursões!

sábado, 5 de dezembro de 2009

pIcHaÇãO


     Como já disse na postagem anterior (O leste e o norte), moro num bairro meio ânus. Pra chegar onde moro preciso passar pela extensão da avenida Bento Gonçalves, desde seu início até a altura do Hospital São Pedro. Faço esse trajeto no mínimo duas vezes por dia — um de ida e um de volta — há quase quatro anos. Esse tempo não foi suficiente para que me acostumasse com os horrores que ali vejo. Falo da feiura provocada por pichações na maioria dos prédios da Bento Gonçalves. Não me conformo que haja no mundo — e também em Porto Alegre — gente que sinta prazer em grafar seu recalque nas paredes das moradias alheias. Não estou falando de grafite, que é uma arte de rua, mas sim daquelas garatujas aleatórias só entendidas e apreciadas por quem é do meio.
     Em setembro, em Viamão, um aluno pichou seu nome na parede da sala de aula que recém havia sido pintada em mutirão pela comunidade escolar. Flagrado por uma professora, esta obrigou-o a repintar a parede. O fato foi parar na justiça, rendeu reportagens, editoriais e crônicas em jornais e várias matérias em emissoras de rádio e de TV. Anteontem (03/12), o caso teve desdobramentos. Para não ter que se submeter a uma ação penal por uma possível infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a professora Maria Denise Bandeira aceitou acordo proposto pela promotora Daniela Lucca da Silva. Pela chamada transação penal, a professora terá que pagar uma multa de meio salário mínimo (R$ 232,50) a ser depositada na conta do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente.
     A promotora — que cumpriu fria e fielmente a lei — penalizou alguém que praticou “educação” e seguiu as diretrizes da escola, estas amparadas pela SEC. Se, por um lado, a decisão foi infeliz, por outro, vai proporcionar um Natal melhor para alunos carentes de Viamão. Ontem (04/12), dezenas de pessoas se prontificaram a ajudar a professora a pagar a transação penal que lhe foi imposta. Essas doações — que superaram o valor da multa — serão depositadas na conta do Conselho de Pais e Mestres da escola Barão de Lucena e o valor será usado na compra de brinquedos.
     Muito propriamente diz Urbano Warcken, colunista do Jornal Bom Dia Rio Grande, de Erechim:

As escolas estão cheias de jovens e adolescentes que vêm de casa indisciplinados, mal educados, respondões, agressivos e dispostos a depredar e destruir. Quando uma escola resolve colocar um “basta” nesta corrente, a Justiça condena a educadora que, no intuito único de educar – na acepção mais literal do termo – fez um aluno reparar os estragos que produziu.

     Quanto ao “pobre” adolescente, aquele que fez arte com seu belo nome na parede da sala de aula recém pintada com os esforços da comunidade escolar, e que foi “injustamente” constrangido, sofrendo o “vexame” de ter que pintar novamente a parede, sabe-se se lá o que vai acontecer com ele. Amanhã ou depois deverá estar com um pano tapando a cara e com sprays de tinta na mão pichando um prédio numa avenida Bento Gonçalves da vida.
     Nos dias de hoje, a lei não pode ser interpretada como palavra fria. Há que se ter, acima de tudo, bom senso, cujo faltou à fiel defensora dos “direitos” daquele adolescente. Fica a pergunta: quem vai fiscalizar o “dever” dele?