Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ié-Ié-Ai!



     Mais uma postagem da série “textos antigos encontrados numa gaveta”. Já que falei de novo nos Old Stones, abaixo, aproveito a oportunidade pra mostrar este texto, que fala daquela época.

     A Rua da Praia, desde a sua criação, sempre teve fases definidas de acordo com a moda e os modos de seus frequentadores. Comecei a frequentá-la a partir de 1967. Era a época da Beatlemania, também conhecida como do IÉ-IÉ-IÉ, e seus cabeludos, entre os quais eu me incluía. Que barra ser cabeludo quando poucos o eram. “Vai cortá'sê cabelo, veado” era a expressão mais ouvida. Daí para o palavrão e o soco não custava nada. Cabeludo, para os que se julgavam “normais”, era sinônimo ou de bicha ou de maconheiro (qualidades, aliás, também muito criticadas na época).
     Como todo cabeludo que se prezava, eu tocava em um conjunto. Era o baterista, naqueles anos, do “The Old Stones”. Curtição total. Festa-e-festa todos os fins-de-semana.
     Qual o porto-alegrense com cerca de 60 anos não se lembra do Aimoré – ali na Ponte de Pedra – ou do Dinamite, ou da Sociedade Espanhola, ou das reuniões na LABRE, ou da Casa de Portugal, do Caminho do Meio, do Independente e de tantos outros clubes e salões? Lembram como era a maioria das reuniões dançantes, quando um conjunto tocava uma ou duas horas até a chegada de outro, depois outro, até a manhã do dia seguinte? E dos programas do Daltro Cavalheiro, nos sábados à tarde, na TV Piratini, canal 5? E das bandas “The Cleans”, “The Coyners” (que virou Impacto), “Liverpool” (com Foguete Luz, Mimi, Marcão, Pecos e Edinho), “The Dazles”, “Som 4” e de tantas outras bandas não menos importantes que pintaram nos anos sessenta e poucos?
     Essas, no entanto, são outras histórias. As que quero contar dizem respeito a cenas que vivi na Rua da Praia e no centro de Porto Alegre, naquela época. Eu morava em Higienópolis, mas um dos caras que tocava comigo morava na Rua da Praia. À tarde, éramos assíduos frequentadores de alguns pontos-chave da Rua da Praia: em frente à Sloper ou em frente à galeria Malcon ou em frente às lojas Ultralar e outros. Era por ali que nos reuníamos com outros “canalhas”, vespertinamente.
     Não sei o que pensam ou o que conversam os que ali se reúnem hoje. Nós pensávamos e falávamos de músicas, das reuniões dançantes em que tocávamos, das gatas com quem transávamos e dos porres que tomávamos. Também paquerávamos habituais transeuntes e, não raro, “a gente dava em cima e ganhava umas-que-outras”. Era legal.
     Outro ponto que eu e meu colega de banda costumávamos frequentar era o da esquina da Marechal Floriano com a Duque de Caxias, na frente do Colégio Sevigné, onde estudavam as duas irmãs dele e suas coleguinhas interessantes.
     Às vezes, pra nos sentirmos (talvez) mais machos ou mais malandros ou mais modernos ou mais sei-lá-o-quê, bebíamos cachaça. Se não com Coca-Cola, pura mesmo. Num daqueles dias, eu e meu amigo (a partir de agora vou passar a chamá-lo de X para preservar sua reputação) fomos para a frente do Sevigné com uma garrafa de Três Fazendas comprada no Bar Leão. Era verão. Bebíamos direto da garrafa, em doloridos goles no início e suaves logo depois. A gente costumava ficar cantando músicas dos Beatles e do Renato e Seus Blue Caps.
     De repente, passa um padre daqueles de batina e chapéu preto, em direção à Catedral Metropolitana. Ah! Não tive dúvidas: lasquei um “fala, urubu” pra ninguém botar defeito. O padre parou, virou-se lentamente pra nós e perguntou-me se tinha falado com ele. X não sabia se ria ou se corria. As duas coisas ele já não podia fazer ao mesmo tempo. Quando parei de rir, percebi que não era um, mas sim dois padres, iguais, gêmeos, com a mesma expressão, com o mesmo cheiro de sacristia. Respondi que “sim, falei contigo, seu padreco filho-da-...”, e continuei rindo.
     Vi, então, o brigadiano que cuidava do trânsito em frente ao Sevigné caminhando em nossa direção. Pisquei os olhos e já não era mais um, mas dois brigadianos, iguais, gêmeos, com o mesmo passo, a mesma gana de cassetear de cabeludos, o mesmo cassetete. Aí, vi que os dois brigadianos falavam com os dois padres... Opa! Eram três de cada espécie agora!
     Imaginei que seríamos presos, que cortariam nossos cabelos e que, depois, chamariam nossos pais. E a explicação?
     Que nada. Como bom cristão, o padre parece ter entendido e, depois de conversar qualquer coisa com o Pedro e Paulo (assim eram conhecidos os PMs naquele tempo), foi-se embora. O brigadiano, por sua vez, aproximou-se e, para espanto nosso, apenas aconselhou-nos a sair dali porque já estávamos nos tornando inconvenientes. E, com todo o respeito — sim, senhor —, saímos, ainda que cambaleando, pra voltar noutro dia qualquer, com outra garrafa de Três Fazendas.
     E não é que voltamos mesmo! Dessa vez comemorávamos(?) a fossa de X, que tinha brigado com a gata que curtia, ou coisa parecida. Não houve, no local, maiores incidentes. Naquele dia tinham ido junto dois amigos comuns. Não lembro se já tínhamos terminado com a garrafa, ou melhor, com o que tinha dentro dela, quando X alegou uma dor-de-barriga. Precisava ir rápido pra casa.
     Bem que tentamos caminhar ligeiro. Foi difícil, no entanto, descer a Marechal Floriano até a Rua da Praia e seguir por ela até o edifício em que morava. Eram umas cinco da tarde. Às vezes, nós quatro tentávamos passar por dentro das pessoas, como se fossem fantasmas. Noutras ocasiões, queríamos passar no meio daqueles pares de gêmeos que caminhavam em sentido contrário.
     Enfim, chegamos. No térreo daquele edifício tinha (não sei se ainda existe) um sanitário. X decidiu que não daria tempo pra subir até o nono andar. Foi taxativo (com “x” mesmo): “vou neste aqui!” O sanitário tinha uma porta que dava para o corredor do edifício. Abrindo-a, via-se uma pia e outra porta, atrás da qual estava o vaso. Não tranca, recomendamos. Mas não adiantou, o cara entrou e trancou-se.
     Apesar de relógio de bêbado não ter ponteiros, o nosso tinha. Só o dele que não. O tempo foi passando. Impacientes, começamos a chamar o desaventurado. E nada de resposta. “Bodeou” pensamos. Um de nós, então, pulou sobre a parede interna do sanitário – que acima era aberta para ventilação – e de lá disse que X tinha apagado. “Aqui não tem nem papel e o cara cagou um monte” – completou.
     E agora, o que fazer? O terceiro companheiro não teve dúvidas: comprou uma Folha da Tarde (extinto jornal vespertino de circulação diária). A porta foi aberta por dentro e, enquanto eu e o terceiro segurávamos X pelos braços, o quarto, sem muita cerimônia, passava-lhe as páginas policiais da Folha da Tarde naquele local sem dono. Pobre do X, a cada passada do papel jornal murmurava entre dentes: “ai”, sem nem abrir os olhos.
     Pra disfarçar o meu constrangimento, eu ficava cantando mentalmente She loves you, dos Beatles. Sempre que chegava na estrofe She loves you, Ié, Ié... “Ai!” gemia X.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

The Old Stones rides again!



"Depois de algum tempo você aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias, e o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida." (William Shakespeare)


     Em 24 de outubro de 2009 postei neste blog o texto The Old Stones. Confira aqui.
     Se não estiver interessado ou não tiver tempo agora, reproduzo o final daquele texto.


     The Old Stones cresceu e ficou conhecido em Porto Alegre e algumas cidades do interior. Durou alguns anos e, depois, cada um seguiu seu rumo, tocando em outros “conjuntos“.
     Em 1996, para comemorar os 30 anos de que havíamos tocado pela primeira vez, o Buffalo promoveu um jantar dançante e os Old Stones se reuniram de novo.

     Pois bem, na noite passada, os Old Stones reuniram-se novamente. Não pra tocar, mas pra celebrar a velha amizade de 44 anos. Na verdade, 244 anos estavam ao redor de uma mesa. Se somarmos a idade do proprietário do bar, que também foi parte daquele círculo, teremos, então, 302 anos.
     Calma. Somos do século passado, mas o atual só tem nove anos, portanto... Explico melhor. Quando nos conhecemos, eu e o Júlio tínhamos 16 anos, o Buffalo, 17, o Português, 15 e o Tonho, proprietário do bar, 14. Hoje estamos, respectivamente, com 61, 62, 60 e 58.
     A história dos Old Stones você já leu (se ainda não leu, faça o favor). Nela, contudo, não falei do Tonho. O João Antônio era um guri que morava na minha rua, onde ensaiávamos. Como também curtia música, estava sempre junto e era um dos que carregavam instrumentos e amplificadores quando íamos tocar (hoje em dia é uma profissão e chama-se roadie). Uma vez a banda ia viajar para o interior e o Português não poderia ir. De tão entrosado que era com o grupo, nem pestanejamos em convidar o Tonho pra substituir o Portuga na excursão. Mas ele era tão guri que a mãe dele não deixou. O Português acabou indo.
     Os Old Stones terminaram. Eu e o Buffalo seguimos tocando em outras bandas. Primeiro juntos, nos Hooligans, depois para lados diferentes: ele para os Invencíveis; eu para a Banda do Pentágono da Paz e, finalmente para o Caos. O Português ainda tocou numa banda chamada Nômades, na qual acabou substituído pelo Tonho. O Júlio, por sua vez, não tocou mais, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, casou-se, foi morar em Tubarão — onde mora até hoje — e tornou-se um profissional da área financeira, aposentando-se pela extinta RFFSA. O Buffalo trabalhou e se aposentou pela Caixa Federal. O Português é engenheiro, tem uma empresa de engenharia e ainda trabalha. Eu trabalhei alguns anos com publicidade, formei-me em jornalismo e, desde 1979, trabalho na UFRGS. Não me aposentei. O Tonho seguiu carreira no meio artístico, trabalhando em rádio, tocando em grupos famosos como a Banda dos Corações Solitários, que é banda do pub Sgt Peppers — do qual era sócio —, e no grupo musical humorístico Discocuecas. Ficou conhecido como garoto propaganda das lojas Tevah e suas jaquetas reversíveis e, atualmente, ainda aparece em comercial da Jimo. Tonho é proprietário do John's Pub, local em que os Old Stones se reuniram ontem.
     Voltando ao encontro de ontem. Foi uma oportunidade de matar a saudade de um tempo que, se voltasse, com certeza nós cinco faríamos tudo exatamente como fizemos. Se não fosse assim, não teríamos sobre o que falar nem o que comemorar 40 anos depois.
     A memória é uma coisa estranha. Algumas passagens eram lembradas por todos, em uníssono. Chamou-me a atenção, no entanto, o fato de cada um lembrar-se de acontecimentos que, apesar de vividos por todos, permaneciam apenas na memória de um ou de alguns, respectiva e vice-versamente (putz, essa foi braba!). Outras coisas se perderam no tempo e se embaralharam de tal modo que alguns lembravam de um pedaço, outros, de outro. No somatório, contudo, acabamos enriquecendo nosso repertório de lembranças.
     Quero ver repeti-las no próximo encontro.
     Muito eu teria para contar sobre a trajetória desses guris cabeludos que, na década de 60, se juntaram com o objetivo de fazer sucesso com a música e “ganhar” todas as gurias que pudessem. É coisa pra livro, mas que, com certeza, só interessaria aos The Old Stones.

Júlio, Buffalo, Portugês e eu, na década de 60


Em sentido horário: Júlio, Buffalo, eu, Português. Agachado: Tonho.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A matança do porco


     Fim de ano, invariavelmente, a gente remexe em armários e gavetas, em busca de coisas antigas que se guardou pra nunca usar. E quanta coisa se guarda sabendo que não vai usar. Quanto papel!
     Fiz isso e encontrei textos que escrevi em meados da década de 70. Estavam numa velha pasta de um congresso que nunca fui. Dei uma lida, uma revisada e, não contente em tê-los guardado por tantos anos em papel, vou deixá-los aqui, a partir de hoje, para guardá-los também neste meio virtual. Pelo menos não ocupam espaço na gaveta...
     Começo com este texto que fiz depois de ouvir música homônima de um grupo mineiro chamado “Som Imaginário”. A música é “A matança do porco”. Ouça-a.



























     Se você se interessa pelo assunto, clique aqui. Caso contrário, passe de imediato à leitura do texto.


A matança do porco


     Vi quando eles saíram da velha casa de madeira plantada na coxilha verde e de raízes entrelaçadas às da figueira que lhe faz sombra. Desceram os trêmulos degraus que gemiam ao peso do ar morno. O mais gordo, que poderia ser o patrão, ficou no vestíbulo. Olhava para o nada a procura de tudo. Procurava um modo de medir tudo sem fazer nada. Atirou o chapéu desbeiçado acima da testa e largou sua gordura num caibro carunchado que ainda sustentava a varanda de telhas desbotadas.
     Os outros, sem demonstrar alguma vontade, caminhavam para cá, trazendo o mormaço nos olhos, covas profundas que davam a impressão de estarem cheias de vermes. Suas roupas, rotas, poucas, não tinham cor. Eram amontoados de remendos que pareciam viver há mais tempo do que quem as vestia. Todos ainda usavam as botinas que ganharam no quartel, há muito tempo, quando, nas horas vagas, o velho patrão era coronel. Nada faltava aos seus naquela época. Agora, já estava morto e esquecido, mas as botinas ainda serviam àqueles pés fiéis.
     Chegaram ao portão do curral e soltaram os seus sovacos nos tocos horizontais que o formavam. Dentro, uns cavalos magros apoiavam-se uns nos outros e duas vacas velhas arrancavam os últimos tufos de pasto que restavam.
     Viraram-se automaticamente sem tirar o corpo do portão e fixaram silenciosamente a longínqua serra. Por um momento, pareceu-me que eles pensavam. E com certeza era nas mulheres da cidade. Há quanto tempo não visitavam aqueles quartos perfumados onde havia uma mistura de loções masculinas. Cada cheiro era de um homem diferente que ali entrava. E isso era de meia em meia hora, o dia todo, a vida toda. E cada homem tocava em outro e saía com o cheiro de todos. Todos iguais, como as mulheres que lhes cheiravam.
     Dois urubus que passaram voando baixo fizeram com que despertassem e caminhassem um pouco. Vieram na minha direção e um súbito vento trouxe o cheiro que talvez tivesse atraído os pássaros carniceiros. O odor saía deles como os vapores saem do chão nos dias quentes. As galinhas que ciscavam por ali correram cacarejando, assustadas.
     Perto havia pequenas árvores, crianças ainda. Pegaram nos seus facões e começaram a cortá-las como se estivessem em mais uma batalha, numa guerra contra os indefesos galhos verdes. Seus ramos, débeis e perfeitos, saltavam para os lados sangrando. Se tivessem voz chorariam. Cada um cortou uma. Restaram outras de sorte duvidosa, futuro incerto. Rasparam os troncos até ficarem lisos. Agarravam e apertavam nas mãos aquelas novas armas. Para mim eram armas. Para eles talvez fossem lápis. Lápis que os ignorantes usam para escrever com o sangue dos outros a afirmação de seu machismo. Giravam-nas e davam golpes no ar quente. Nos poucos dentes que tinham, via-se um sorriso de ódio. As coroas de ouro brilhavam ao sol que fugia para oeste.
     Meteram-se numa brincadeira de imbecis. Batiam os cacetetes uns nos outros e gritavam como demônios, correndo em roda. Às vezes um caía ao chão o os outros se punham a rir e a jogar-lhe terra com os pés. Assim ficaram por algum tempo até repararem na minha amedrontada presença.
     Falaram qualquer coisa. Combinaram algo sinistro, como pude ver pelo brilho dos seus olhos. Não sei se por isso ou por que, afastei-me devagar. Olhei para trás e vi que me seguiam. Apressei o passo das minhas pequenas pernas. Eu estava gordo e não podia correr muito. Cercaram-me. Cada um de um lado e sempre chegando perto. Bradavam as armas e soltavam grunhidos que se perdiam pelos campos virgens. Não sabia pra qual lado ir. Virei para trás e o sol caído ardeu-me nos olhos. Tinha que haver um modo de fugir. Estava com medo.
     Quantas vezes maldisse aquela terra crua, aquele ambiente sem chances para mim. Naquele lugar só se comia para sobreviver. Eu queria mais, um pouco mais. Um lugar seguro onde dormir. Uma comida melhor, não só restos. Uma fêmea. Talvez com uma companheira eu até ficasse por ali. Eu viveria em qualquer pocilga. Quando cheguei, nos tempos do coronel, havia muita esperança. Ainda era pequeno. Nunca mais soube de meus pais. O lugar era mais decente, a comida era melhor. Tinha um canto só para mim. Era bom.
     Em relâmpagos voltava o meu passado. Não havia muita coisa para recordar. Foi tudo uma sucessão de esperanças. Algum dia haveria de ser melhor que o anterior.
     E os porcos com seus porretes acercavam-se, acuavam-me. Comecei a berrar não sei por quê. Talvez para ganhar forças ou para atrair a atenção de alguém. Mas quem me ouviria naquele fim de mundo deste mundo sem fim? Eu berrava e corria em círculos. Parei um pouco e vi, em cima da cerca, os urubus que passaram antes. Tinham um olhar estranho aquelas bestas fétidas. E que pressentimento: sabiam que sobraria algo para eles ou foi o cheiro dos porcos de porrete que os atraiu?
     Senti nas costas uma pontada quente. E outra. Rolei para o lado grunhindo. Um deles escorregou e caiu ao meu lado. Era uma chance. Pisoteei-o e escapei pelo buraco que se formou na barreira. Não fiquei só por muito tempo. Em seguida comecei a sentir novamente as pancadas. Os seus berros agulhavam-me os ouvidos. As pancadas ardiam-me na carne e nos ossos. Fiquei tonto, mas não parei de correr e berrar.
     Bem que eu poderia parar e esperar calmamente a presença da morte. Em pouco tempo, então, eu seria apresentado a ela e não haveria mais pauladas, agulhadas, dores e odores. Mas restava a esperança. Eu, que vivi até aquele momento com ela, não poderia abandoná-la. Continuaram as pauladas. Meus grunhidos diminuíram, os deles aumentaram. A força começou a me fazer falta e a dor era insuportável. Tombei.
     Ao longe ouvia as risadas desdentadas. Abri os olhos com esforço e o que vi fez-me fechá-los de novo. Um deles largara o porrete o desembainhava a sua faca suja. Recomecei a berrar quando senti várias mãos grandes tocarem o meu corpo moribundo. Foi o mesmo que nada. A esperança, a velha companheira, foi-se embora. Num último grunhido senti meu corpo cansado ser perfurado abaixo da pata dianteira esquerda por uma lâmina com gosto de terra e cheiro de carne seca. Agora eu poderia conhecer a morte. Sem mais dor, sem mau cheiro, sem restos e sem frustrações. Agora eu teria um lugar só para mim.
     Mas qual não é minha decepção, meu corpo pendurado no gancho frio do açougue. Qual não é minha frustração estar ao lado de bois, vacas e galinhas que se renovam diariamente. E eu sempre aqui, esperando, sentindo o mau cheiro destas carnes velhas e gordas. Pelo pouco que devo ter rendido — talvez meia hora com uma das mulheres do bordel —, bem que poderia ter sido deixado aos urubus. Enfim, dói-me mais do que as pauladas saber que espírito de porco não tem lugar algum em outro mundo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Cartões de Natal



     Houve um tempo, do qual ainda lembro, que as pessoas costumavam trocar cartões de Natal. Meu pai, sujeito muito organizado, mantinha uma lista de parentes e famílias de amigos à qual recorria nessa época, todos os anos. Para cada um, além do texto que vinha impresso nos cartões, mandava uma mensagem personalizada de poucas palavras. Ele escrevia alguns; minha mãe, outros. Lembro-me até da letra de cada um: a do meu pai, elegante e legível, com jeito de quem se debruçava sobre os cadernos de caligrafia; a da minha mãe, também legível, mas bem simples, de alguém que se alfabetizou lá por 1917, em Caxias do Sul.
     Havia um fato que me chamava a atenção: só mandavam cartões a quem, no ano anterior, os tinha retribuído. Aquela lista de parentes e amigos tinha uma marca ao lado do nome de quem não respondia com iguais votos de Feliz Natal e Próspero Ano Novo. A cada ano, essa relação de nomes ficava menor. Havia duas implicações nesse ato: uma moral, de “não lembrar” de quem não se lembrava de nós; outra financeira, pois era menos despesa com cartões e remessa pelos correios.
     Mais tarde, quando eu já tinha meus filhos, procurei manter esse costume. Não tinha uma lista de nomes, mas mandava cartões a parentes e a amigos mais íntimos. Mantinha, também, o hábito de só mandar a quem respondera aos votos do ano anterior. Essa troca de cartões, contudo, não durou muito. Eram tão poucas as respostas que acabei deixando esse costume de lado.
     Com o advento da informática, mas antes da internet, passei a confeccionar e a imprimir os poucos cartões que enviava. Apelava pra criatividade e montava belas (e modestas) mensagens com fotos da família e textos personalíssimos, que não seriam lidos em nenhum cartão comprado.
     Foi então que a internet se popularizou. As pessoas e os carteiros passaram a ter menos trabalho. As pessoas porque não precisam mais ir a uma livraria comprar os cartões, escrever nome e endereço do destinatário, etc.; os carteiros porque não têm mais aquele volume grande de correspondências para entregar nos finais de ano.
     Agora, os que ainda mantêm a tradição de trocar cartões de fim de ano recorrem à internet em busca de imagens bregas de papais noéis, renas, guirlandas, pacotes de presentes ou, então, de apresentações em Power Point (os famigerados arquivos “pps”) com textos igualmente bregas e quilométricos, com imagens que levam horas pra trocar e com aquelas musiquinhas de Natal muito chatas de fundo, que levam um tempão pra carregar no computador da gente. Encontrado o objeto, o trabalho que têm é encaminhá-lo à lista de contatos eletrônicos, todos de uma vez. Pronto, cumprida a “obrigação”.
     Confesso que faço quase o mesmo. Repito os passos das duas últimas frases do parágrafo anterior: mando a mensagem a minha lista de contatos e me sinto com o dever cumprido. Passo longe, no entanto, da primeira fase, de procurar desenhos e mensagens bregas. Faço as minhas próprias mensagens cafonas.
     Neste ano, antes de mandar minha mensagem, havia recebido apenas uma, de um velho amigo, que também se valeu de sua criatividade escreveu um belo texto e acrescentou o link para um vídeo do Youtube. Depois que mandei a minha, recebi alguns agradecimentos e retribuições, muitas em forma de arquivos “pps” sem criatividade alguma.
     Só de raiva, fiz em Power Point a mensagem deste ano. Não tive coragem, entretanto, de fazer como aquelas apresentações demoradas. É apenas uma página com um texto e uma foto que compartilho com vocês (claro que não em “pps”, mas adaptada ao formato desta página). Quero ver se alguém vai responder.

Fantasia

     Nos imaginamos como um casal bonito e famoso. Tipo assim: Richard Burton e Elizabeth Taylor; Tom Cruise e Katie Holmes; Michael Douglas e Catherine Zeta-Jones, enfim, qualquer um dos tantos. Escolhemos ser Brad Pitt e Angelina Jolie. Graças ao Photoshop, isso foi possível, mesmo que virtualmente, visível no monitor do computador, no porta retrato digital, num álbum de fotos reproduzido na TV ou até impresso.


Isso é uma coisa puramente ideal ou ficcional, sem ligação com a realidade. É o que chamamos de fantasia
     Que bom se fantasia e realidade trocassem de lugar. Isto, claro, é mais uma fantasia. Pra citar um exemplo mais atual, imagine traficantes entrando em delegacias e se entregando pacificamente; imagine a polícia invadindo casas humildes para entregar cestas básicas; imagine uma cesta básica com filé mignon, picanha, foie gras; imagine todas as ruas de Porto Alegre asfaltadas e sem congestionamentos; imagine ar puro, sacolas de papel, garrafas de vidro... Imagine o contrário de tudo que você acha ruim. Fantasie. Seja criativo. Não se deixe levar pela realidade, mas, com os pés no chão. Enfrente o futuro.
     Esteja pronto pra 2011.

Clara e Aldo

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A "formidável" carga tributária



     Cá estou de novo pra falar da “formidável” carga tributária aplicada a todos nós, brasileiros. Antes, contudo, quero explicar por que escrevi formidável entre aspas. Antigamente, o termo significava “que inspira grande temor; que é perigoso; que tem aspecto terrificante”. Esta definição consta nos dicionários como obsoleta. Mas há outras acepções. De acordo com o brasileirismo — palavra ou locução própria de brasileiro —, formidável significa “muito bom, muito bonito; admirável, excelente, magnífico”. As acepções usuais, por sua vez, dizem que formidável é aquilo “que é acima do comum pela força, pela intensidade; descomunal, colossal”; ou “que desperta respeito, admiração ou entusiasmo”.
     O meu formidável entre aspas, por óbvio, não se refere ao brasileirismo, nem a algo que seja muito bom, muito bonito, admirável, excelente ou que desperte respeito, admiração ou entusiasmo. Diz respeito à definição obsoleta e, também, ao primeiro dos significados atuais. Pra mim, a carga tributária brasileira inspira grande temor, é perigosa, tem aspecto terrificante, é acima do comum pela força, pela intensidade, é descomunal e colossal.
     Visitei o site do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), que é uma entidade de difusão do planejamento tributário como instrumento empresarial, visando a demonstrar as várias modalidades de redução legal da carga tributária empresarial. Fiquei sabendo que a arrecadação de impostos no Brasil chegará a R$ 1,2 trilhão até o fim do ano. Isso quer dizer que cada brasileiro estará desembolsando R$ 6,7 mil até 31 de dezembro de 2010. Se levarmos em conta, por exemplo, que 12 milhões de brasileiros estavam desempregados (dados de outubro) e que 44,5 milhões têm até 14 anos, o desembolso mensal do brasileiro produtivo subirá para R$ 8,9 mil. Isso, é claro, em números gerais. Se dividirmos a população produtiva em salários percebidos, teremos uma classe média pagando uma verdadeira fortuna de impostos por ano.


     O IBPT mantém no ar o Impostômetro, que registra em tempo real o que o brasileiro está pagando em impostos para união, estados e municípios. No exato momento em que escrevo este texto (16h00min de 30/11), o Impostômetro revela que R$ 1.130.109.977.541,86 estão sendo arrecadados no Brasil. Desde que olhei, pela manhã, exatamente às 10h08min38s, o montante arrecadado de tributos já aumentou R$ 900.092.204,72!
     E não tem que chega! Estão pensando em recriar a CPMF com novo nome: Contribuição Social para a Saúde (CSS). Segundo o Instituto, se o imposto for reeditado nos moldes anteriores, com uma alíquota de 0,38% sobre qualquer movimentação financeira, poderá representar um acréscimo de R$ 65 bilhões na arrecadação federal. “A grande massa da população brasileira está no sistema financeiro e terá que pagar o tributo. Mas os mais prejudicados serão os consumidores da classe média emergente, que estão entrando agora no mercado de consumo”, diz Silvânia Araújo, economista-chefe da Federação do Comércio do Estado de Minas Gerais (Fecomércio), em entrevista ao Correio Braziliense. Segundo ela, essa camada da sociedade já paga altas taxas de juros para ter acesso ao crédito e verá a renda disponível para o consumo ou para a poupança reduzida.
     Ainda de acordo com a matéria, nas empresas, quanto maior o número de elos da cadeia produtiva, maior será a arrecadação final com a contribuição. Segundo cálculos do IBPT, o tributo aumenta os custos dos produtos no país, na média, em 1,5%. O preço de um automóvel Gol 1.0 total flex, quatro portas, que custa R$ 29.640 na tabela Fipe, poderá subir para R$ R$ 31.122 com a recriação da CPMF. Do mesmo modo, uma calça jeans de R$ 160 passará a custar R$ 162,40. O impacto sobre o preço final é maior do que a alíquota porque o cálculo é feito de maneira embutida e incide, em cascata, em todas as etapas de produção.
     “Esse é um tributo medieval, porque não é aplicado sobre a geração de riquezas e sim sobre a circulação do dinheiro. Por isso, distorce a economia e reduz a eficácia do sistema tributário”, avalia o economista Cláudio Gontijo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
     Mas não é só em arrecadação que o Brasil é “generoso”. Estudo do IBPT revela que são editadas 46 normas tributárias por dia útil no Brasil. Do total de 4.155.915 normas gerais editadas nos 22 anos da atual Constituição Federal, 541.100 (13,02%) estão em vigor, enquanto que das 249.124 normas tributárias editadas neste período, o número chega a 18.409 (7,4%).
     Desde a promulgação da Constituição foram editadas 154.173 normas no âmbito federal, uma média de 19,19 por dia ou 28,72 normas federais por dia útil, enquanto os estados editaram 1.095.279 normas, o que dá 5,05 norma/dia ou 7,56 norma/dia útil. Já os municípios são responsáveis pela edição de 2.906.463 normas, considerando que existem 5.567 municípios no Brasil, cada um deles editou, em média, 522,09 normas neste período.
     Do total de normas editadas no Brasil nestes 22 anos, cerca de 6% se referem à matéria tributária. São 28.591 normas tributárias federais (11,5% das normas tributárias), 83.516 normas tributárias estaduais (33,5% das normas tributárias) e 137.017 normas tributárias municipais (55% das normas tributárias). Em média foram editadas 31 normas tributárias/dia ou 1,3 norma tributária por hora e 46 normas tributárias/dia útil ou 5,8 normas por hora/útil.
     Segundo o coordenador de estudos do IBPT, Gilberto Luiz do Amaral, a legislação brasileira é um emaranhado de temas. “É um conjunto desordenado de assuntos, tornando praticamente impossível que o cidadão conheça e entenda o seu conteúdo.”
     Voltando aos impostos. Há pouco mais de um ano, tive um problema com a Receita Federal: não estava recebendo a restituição do Imposto de Renda Retido na Fonte. Depois de muita pesquisa, descobri que não poderia declarar o que pagava de plano de saúde para meus filhos porque eles já não eram mais meus dependentes para fins de imposto de renda. Um absurdo, uma vez que a gestora do plano estava pagando imposto pelo recebimento daquele valor.
     Classifico como absurdo porque, pela lógica, com o que pago de imposto anualmente não deveria bancar um plano de saúde privado para a família, meus filhos poderiam ter estudado em boas escolas públicas. Se houvesse uma contrapartida justa, eu — e acredito que a grande maioria — pagaria impostos com prazer; não seria necessário haver um Impostômetro para “denunciar” a festa arrecadatória; haveria menos analfabetos, menos criminalidade e melhor tratamento aos doentes. Resumindo: teríamos retorno dos impostos pagos em investimentos, no mínimo, em saúde, educação e segurança pública.
     Entre os 26 países com maior tributação direta sobre, por exemplo, salários, o Brasil está em segundo lugar (42,5%), ficando atrás apenas da Dinamarca, com carga tributária de 42,9%. Na Argentina, os tributos sobre salários somam 27,7% e nos Estados Unidos, 24,3%. Mas há uma diferença: os tributos incidentes sobre os salários na Dinamarca revertem em excelência nos serviço de saúde, educação e segurança. Já no Brasil, devido à precariedade do atendimento em hospitais públicos, grande parte dos trabalhadores precisa pagar planos de saúde privados; para ter boa educação, precisa pagar escola particular. Além disso, como o teto de aposentadoria do INSS é muito baixo, quem quiser uma renda melhor no futuro tem que pagar previdência privada.
     Não estou aqui criticando esse ou aquele partido nem um ou outro político, mas sim um sistema podre que, me parece, não tem solução.

sábado, 27 de novembro de 2010

Culpa, remorso e arrependimento



     Aconteceu no dia 17 passado. Douglas perdeu a bola no meio do campo. Ela sobrou para Messi, que correu em direção a gol sem ser parado por ninguém da seleção brasileira. Resultado: Argentina 1 x 0 Brasil, aos 46 do segundo tempo.
     Imediatamente, especialistas, comentaristas e entendidos em geral decretaram que a culpa da derrota era de Douglas.
     Não se assuste. Este texto não é sobre futebol. É sobre culpa, aquilo que os dicionários definem como “conduta negligente ou imprudente, sem propósito de lesar, mas da qual proveio dano ou ofensa a outrem; falta voluntária a uma obrigação, ou a um princípio ético; atitude ou ausência de atitude de que resulta, por ignorância ou descuido, dano, problema ou desastre para outrem”, entre outras acepções em rubricas específicas.
     No caso da seleção brasileira em seu amistoso com a Argentina, é muito fácil criticar Douglas e culpá-lo pelo fracasso. Ocorre que qualquer um poderia ter perdido a bola e deixá-la sobrar para Messi carimbar a rede brasileira. Eu me arrisco a dizer que a culpa foi de quem deveria estar dando cobertura na eventualidade de a bola ser roubada no meio de campo; poderia dizer que a culpa foi do treinador, por não ter alertado sobre esse perigo ou, noutra hipótese, ter colocado em campo um jogador que não estivesse à altura da seleção. Dizem que a melhor defesa é o ataque. Pois então a culpa é do ataque, que não foi eficiente.


     A culpa atribuída à Douglas pelos entendidos se dá no plano objetivo ou intersubjetivo, que é quando um grupo, ao avaliar atos que resultaram em prejuízo a outros, atribui a responsabilidade a um indivíduo. No sentido subjetivo, a culpa é um sentimento que assume a consciência de um sujeito quando este avalia negativamente seus atos e sente-se responsável por falhas, erros e imperfeições. Não foi este o caso em tela, uma vez que Douglas não se sentiu culpado.
     A culpa também é tratada pela psicologia, pela religião e pelo direito.
     No direito penal, culpa refere-se a ato voluntário, proveniente de imperícia, imprudência ou negligência, de efeito lesivo ao direito de outrem; fato, acontecimento de que resulta um outro fato ruim, nefasto; consequência, efeito. É, portanto, um erro não proposital. Diferencia-se do dolo porque, neste, o agente tem a intenção de praticar o fato e produzir determinado resultado: existe a má-fé. Na culpa, o agente não possui a intenção de prejudicar o outro, ou produzir o resultado. Não há má-fé. Para o direito civil, culpa é falta contra o dever jurídico, cometida por ação ou omissão e proveniente de inadvertência ou descaso.
     No sentido religioso, a culpa advém de um ato da pessoa que recebe avaliação negativa da divindade, por se constituir na transgressão de um tabu ou de uma norma religiosa. A sanção religiosa é um ato social, e pode corresponder a repreensão e pena objetivas. De outra parte, a culpa religiosa compreende também um estado psicológico, existencial e subjetivo, que propõe a busca de expiação de faltas ante o sagrado como parte da própria experiência religiosa. Neste sentido, o termo pecado está geralmente ligado à culpa.
     A psicologia, por sua vez, examina a culpa como sentimento de culpa ou remorso. O sentimento de culpa é o sofrimento pelo qual passa o indivíduo depois de reavaliar um comportamento tido como reprovável por si mesmo. Para esta ciência, a culpa é um sentimento como qualquer outro, que pode ser tratado terapeuticamente.
     Na mesma trilha da culpa andam o remorso e o arrependimento (que não são a mesma coisa).
     Remorso é um sentimento praticado por alguém que acredita ter cometido um ato que infringe um código moral ao qual obedece. Dessa forma, torna-se (ou acredita ter se tornado), por isso, passível de alguma condenação e punição. Como não quer sofrer tal punição, pune-se, então, de alguma maneira mais suportável. Quem sente remorso, no entanto, não está verdadeiramente arrependido do mal que causou a terceiros. Está apenas motivado pelo medo da punição do meio social em que vive ou de uma entidade superior, punindo a si mesmo de alguma maneira. Uma forma de autopunição é, por exemplo, forçar-se a se entristecer, que é a manifestação mais comum do remorso. Alguém com remorso entende que ao se autopunir terá seu erro redimido, fugindo de uma punição que seria ainda mais severa.
     Arrependimento, por sua vez, quer dizer mudança de atitude, ou seja, atitude contrária àquela tomada anteriormente. O arrependido verdadeiramente percebe e se sensibiliza das consequências ruins que seus atos causaram para outras pessoas. Essa sensibilização à dor alheia leva o arrependido a uma tristeza verdadeira pelo dano sofrido pelos que prejudicou. E, como consequência, o arrependido toma a firme decisão de não mais cometer o mesmo erro, para não mais causar mal a outros. O arrependimento pode também ser considerado como a dor sentida por causa da dor causada.
     Ao falar em culpa, remorso e arrependimento, lembrei que num dos textos judaicos encontra-se a citação: “a própria consciência é o mais feroz acusador do culpado”. Ao falar em citação, lembrei de outras:

“A maior punição do homem é o remorso." (Miguel Couto)

“Existe, sem dúvida, um remédio para cada culpa: reconhecê-la”. (Franz Grillparzer)

“Da primeira vez que me enganares, a culpa será tua; já da segunda vez a culpa será minha”. (Provérbio Árabe)

“O culpado que se arrepende não está perdido”. (Demócrito)

“A vigília é a penitência maior; por isso foi escolhida a insônia para companheira do remorso”. (Coelho Neto)

“Quando se culpa os outros, renuncia-se à capacidade de mudar”. (Douglas Adams)

“O remorso é a única dor da alma que o tempo e a ponderação não conseguem nunca acalmar”. (Delphine)

“Errar é humano. Botar a culpa nos outros, também”. (Millor Fernandes)

“É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”. (Raul Seixas)

“Todos são culpados mas ninguém tem culpa”. (Bob Hoffman)

“Todo o homem é culpado do bem que não fez”. (Voltaire)

“O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros”. (Confúcio)

“Quando ficam uns a atirar a culpa para os outros, a culpa, podem crer, é de todos”. (Mário Negreiros)

     Como se vê, muitos já trataram do tema. Mas essas citações e pensamentos foram proferidos, na maioria dos casos, por pessoas ilustres. O que eu gostaria de saber é como age a consciência de quem pratica um crime bárbaro, um homicídio por motivo fútil, como uma briga no trânsito, uma rusga familiar, etc. A culpa, salvo raras exceções, é provada. O improvável é se o criminoso arrependeu-se ou se sente remorso.

domingo, 21 de novembro de 2010

Monstrengos tinhosos



     A notícia não é nova. Saiu em todos os jornais e noticiários de rádio e TV. Reproduzo a notícia publicada no Estadão, em 09 de novembro.

CNJ afasta juiz que classificava Lei Maria da Penha como ‘monstrengo tinhoso’

     BRASÍLIA - O juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), acusado de machismo no julgamento de processos relacionados à Lei Maria da Penha, foi posto em disponibilidade pelo Conselho Nacional de Justiça por 9 votos a 6. Por pelo menos dois anos, ele ficará afastado do trabalho, recebendo vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.
     No caso que levou à abertura do processo, em 2007, o juiz dizia ver “um conjunto de regras diabólicas” e afirmava que “a desgraça humana começou por causa da mulher”. Além disso, o magistrado considerava a Lei Maria da Penha absurda e a classificava como um “monstrengo tinhoso”.
     “Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”, afirmava o juiz em sua decisão. “Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões”, acrescentava.
     No julgamento, os conselheiros colocaram em dúvida, além da imparcialidade e cumprimento funcional, a sanidade mental do magistrado. Alguns dos seis conselheiros, que votaram apenas pela censura ao magistrado, propuseram que o juiz fosse submetido a exames de sanidade mental. A decisão do Conselho levou em consideração, mais do que os termos da decisão do juiz, as declarações feitas à imprensa e a divulgação dos argumentos.
     Por conta da decisão do CNJ, depois dos dois anos que ficar afastado, o magistrado terá de provar estar “curado do machismo” ou do suposto desequilíbrio mental. “Esse magistrado não tem equilíbrio, seja pelo preconceito que demonstrou nas suas decisões, seja pelos debates que travou (sobre a Lei Maria da Penha) pela imprensa”, afirmou o conselheiro Felipe Locke. “Lamento muito que um magistrado pense dessa forma do gênero que lhe deu a vida. É lamentável que o magistrado pense dessa forma das mulheres”, acrescentou o conselheiro Marcelo Nobre.
     O vice-presidente do CNJ, ministro Carlos Ayres Britto, afirmou que o juiz, nas suas decisões, incitou o preconceito contra a mulher, o que é vedado pela Constituição. “A decisão toca as raias do fundamentalismo. Foi uma decisão obscurantista”, criticou. “O juiz decidiu de costas para a Constituição”, acrescentou.

(...)

     Vozes, ou melhor, textos repercutiram o fato na internet. Destaco um, a favor do juiz punido, que encontrei num site chamado “textosterona”.

Juiz é suspenso por ser machista

     Não estou sozinho. Descobri que tenho mais um companheiro nessa luta para reestabelecer a ordem mundial. O juiz Edilson Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas (MG), foi suspenso por 2 anos por proferir sentença machista. Em uma sentença dada, em 2007, em processo que tratava de violência contra a mulher, ele utilizou declarações machistas para criticar a Lei Maria da Penha. O juiz afirmou, por exemplo, que “o mundo é masculino e assim deve permanecer”. E também manifestou a mesma posição em seu blog na internet e em entrevistas à imprensa.

     Veja, agora, o que propõe o “textosterona”.

     O Blog Textosterona surgiu com o intuito de quebrar alguns mitos. Dentre os principais, o de que homem também sabe escrever, PORRA! E mulherzinhas machinhas também sabem. Como a maioria das boas ideias surgem em botecos, esta também não poderia ser diferente. Formado por um grupo de amigos altamente suscetíveis à cachaça, transmitiremos um pouco dos assuntos debatidos em meio a total embriaguez. Então, não espere grande coisa, mas espere se identificar bastante com os temas abordados. Se você não se identificar, certamente você não tem uma turma foda ou não bebe. E na boa? Não confiamos em quem não bebe.

     Leia quem são e como se descrevem os espermatozoides autores do “textosterona”:

     Renatto Neves - O mais completo paradoxo perfeito. Sou o protótipo da confusão. Uma mistura sutil de valores que intrigam a todos, inclusive a mim. Dono de opinião e cabeça dura. Ouvido e ombro de várias amigas, o que me rendeu grandes conhecimentos no âmbito feminino, pronto pra ser despejado em caracteres.
Viktor Medeiros - Um jovem com boas intenções. Rá! Pegadinha do malandro. Mas, podem contar comigo farei de você um verdadeiro RESENHA.

.::o::.

     Até aí morreu Neves. Coisa de guri com sérios problemas emocionais relacionados à homossexualidade. Apenas mais dois “monstrengos tinhosos”. O que considerei mais grave foi a opinião do desembargador Carlos Cini Marchionatti, do Tribunal de Justiça do RS, publicada na coluna In verbis, do Correio do Povo de 21 de novembro (domingo), que reproduzo abaixo.

As mulheres, deusas da beleza e o direito de defesa e de opinião

     Sério acontecimento não está sendo devidamente observado.
     Assisti à recente sessão do Conselho Nacional de Justiça que afastou magistrado mineiro por ter cometido excesso de linguagem preconceituoso à mulher em sentença judicial datada de 2007. Foi ele afastado da jurisdição.
     Após a defesa, o presidente do Conselho Federal da OAB pediu a palavra e pronunciou-se pela punição exemplar.
     Este pronunciamento caracteriza exorbitância em relação às finalidades estatutárias da OAB e grave ofensa ao direito de ampla defesa como garantia fundamental da Constituição da República.
     A defesa é a última a se pronunciar antes do julgamento, e adveio a condenação pela opinião considerada incitação ao preconceito, porque a prova demonstrou a correção pessoal do representado, sua imparcialidade e a admiração dos jurisdicionados.
     Aí está a segunda gravidade, a ênfase do julgamento da opinião ou do excesso de linguagem. Deve-se dizer uma opinião infeliz, desgraçada, incabível numa sentença, uma reles opinião, ainda assim uma opinião.
     O sagrado direito de defesa foi aviltado e o julgamento foi da opinião como preconceito. É isso que a Constituição da República preconiza?
     Poetas dizem que a mulher é obra-prima da criação divina. As mulheres são deusas da beleza e do amor. São opiniões ou sentimentos aplaudidos por muitos, mas não por todos. É a minha opinião, da qual não abro mão, embora não fique falando dela nas minhas sentenças.
     Um exagero? Ainda assim uma opinião, à semelhança da infeliz generalização feita na sentença em relação à mulher.
     Pode o CNJ penalizar quem expressou em sentença opinião sobre a mulher, mesmo que lastimável, fato ocorrido em 2007? Em que medida pode punir, por censura da linguagem ou afastamento da jurisdição? O quanto isso importa para o futuro das opiniões independentes que as sentenças representam? Atinge-se a independência das sentenças que garantem ao povo o seu direito? O juiz estará obrigado a julgar conforme a opinião dominante do CNJ, sob pena de afastamento da jurisdição?
     O acontecimento é grave demais para solução neste pequeno artigo, compreensível na sua essência e finalidade: é um alerta e uma crítica em repúdio à decisão do CNJ ao aviltar o direito de defesa e afastar da jurisdição quem expressou mera opinião, ainda que preconceituosa e censurável, porque o direito de defesa garantido a todos e o de opinião, indispensável às sentenças judiciais, são conquistas da humanidade incorporadas na nossa Constituição da República.

.::o::.

     Que bonito, ó, senhor deus onipresente e onipotente! Quer dizer que se trata de “mera opinião” asseverar em sentença judicial que “a desgraça humana começou por causa da mulher”, considerar a Lei Maria da Penha absurda e a classificar como um “monstrengo tinhoso” e outros disparates?
     Agora vai a minha opinião: esse senhor deus onipresente e onipotente é mais um “monstrengo tinhoso”!
     E não queira, senhor desembargador, punir-me por essa opinião. O senhor mesmo diz que, apesar de lastimável, exagerada e com excesso de linguagem preconceituosa, uma opinião não pode ser punida. E, veja bem, isto não é uma sentença judicial, mas apenas uma infeliz e desgraçada opinião postada em um obscuro blog.
     O senhor veio de uma mulher, desembargador. Por acaso, tem esposa? Tem filha? O que pensa delas? Qual seria sua opinião se algum juiz fosse penalizado por opiniões contra a lei Afonso Arinos? O que o senhor pensa sobre o Projeto de Lei PLC 122/2006, que aborda as mais variadas manifestações que podem constituir homofobia?


     Desculpe-me, senhor desembargador, mas mantenha suas opiniões na sua roda de amigos, não as publique num jornal dominical.

domingo, 14 de novembro de 2010

Casamento




     Casamento é uma coisa de ações, vontades e sentimentos opostos, que assusta a muitos, ao mesmo tempo em que outros o encalçam desesperadamente. Tem gente que foge dele assim como de um cachorro brabo, especialmente homens, ou por serem muito galinhas ou por não serem muito homens; por outro lado, tem gente que o procura em agências matrimoniais e até na internet.
     Os dicionários brasileiros dizem que casamento é “ato solene de união entre duas pessoas de sexos diferentes, capazes e habilitadas, com legitimação religiosa e/ou civil” ou “união voluntária de um homem e uma mulher, nas condições sancionadas pelo direito, de modo que se estabeleça uma família legítima”.
     Estão ultrapassados esses pais dos burros. Nas próximas edições terão de incluir na principal acepção que casamento é ato solene ou união voluntária entre duas ou mais pessoas, etc. etc. Sem essa de “duas pessoas do mesmo sexo” ou “união de um homem e uma mulher”. Isso já era.
     A sociedade cria diversas expressões para classificar os diversos tipos de relações matrimoniais existentes. As mais comuns são:
casamento civil - celebrado sob os princípios da legislação vigente em determinado Estado (nacional ou subnacional);
casamento religioso - celebrado perante uma autoridade religiosa ;
casamento aberto (ou liberal) - em que é permitido aos cônjuges ter outros parceiros sexuais por consentimento mútuo
casamento branco ou celibatário - sem relações sexuais;
casamento arranjado - celebrado antes do envolvimento afetivo dos contraentes e normalmente combinado por terceiros (pais, irmãos, chefe do clã etc.) ;
casamento de conveniência - que é realizado primariamente por motivos econômicos ou sociais;
casamento misto - entre pessoas de distinta origem (racial, religiosa, étnica etc.);
casamento morganático - entre duas pessoas de estratos sociais diferentes no qual o cônjuge de posição considerada inferior não recebe os direitos normalmente atribuídos por lei (exemplo: entre um membro de uma casa real e uma mulher da baixa nobreza);
casamento nuncupativo - realizado oralmente e sem as formalidades de praxe;
casamento putativo - contraído de boa-fé mas passível de anulação por motivos legais;
casamento poligâmico - realizado entre um homem e várias mulheres (o termo também é usado coloquialmente para qualquer situação de união entre múltiplas pessoas);
casamento poliândrico - realizado entre uma mulher e vários homens, ocorre em certas partes do himalaia;
casamento homossexual ou casamento gay - realizado entre duas pessoas do mesmo sexo.

     Em sentido figurado, casamento é “aliança, união, combinação, harmonia”, “combinação harmoniosa de duas ou mais coisas; união estreita e íntima”, ou seja, praticamente o oposto do que é o casamento em sentido restrito para muitos casais. Metaforicamente podemos dizer, por exemplo, que os pés de Pelé eram casados com a bola. Os de Maradona também, se bem que a bola teve um famoso affair com a mão dele. Essa “pulada de cerca” da mão de Maradona tirou a Inglaterra da Copa de 86. Os pés dos Ronaldinhos também se casaram com a bola. Ultimamente andam um pouco às turras, mas, ainda assim, é um casamento. Os de Neymar, por sua vez, estão em lua de mel com a gorduchinha.
     Deixando os argentinos e o sentido figurado de lado, confesso que não me incluo entre os que fogem (ou fugiram) do casamento como de cachorro doido, mas também não o procurei aflitamente. Eles simplesmente aconteceram na minha vida. Sim: “eles”! Estou no terceiro e, garanto, último.
     O primeiro veio cedo. Eu tinha 23 anos, ela, 19. Não foi por necessidade, pois nem filhos tivemos em quatro anos e meio. Eu tinha um bom emprego, tínhamos onde morar sem pagar aluguel e uma vontade tremenda de ficarmos juntos. Foi bom enquanto durou. Pelo menos é o que eu acho.
     Durante a vigência desse casamento, me senti incentivado a continuar a estudar e comecei a fazer jornalismo. Um ano antes do final do curso já estava separado e, pasme, namorando outra mulher, que conheci uma semana depois de sair de casa. Menos de um ano depois, fui morar com ela, que já estava grávida por ocasião da minha formatura.
     Nossa filha nasceu em junho. Depois de um ano e três meses nasceu nosso filho. Esse casamento durou 27 anos, dos meus 28 aos 55, justamente o auge da minha vida até agora. Nem preciso salientar a importância dessa união que, assumo, terminou por culpa minha.
     Foi então que, sem procurar muito, acabei encontrando na internet minha atual mulher. Faz cinco anos que estamos juntos. Antes de me conhecer, ela teve um relacionamento de 21 anos. Não éramos mais — nem somos — marinheiros de primeira viagem. Pelo contrário, já conhecíamos — e conhecemos bem — os mares por onde devemos navegar.
     Longe de mim classificar a minha idade como sendo de “terceira”. Em países em desenvolvimento, por exemplo, alguém é considerado de terceira idade a partir dos 60 anos. Para a geriatria, somente após alcançar 75 anos a pessoa é considerada de terceira idade. Vamos dizer, então, que estamos na maturidade, que, em sentido figurado, quer dizer “perfeição, excelência, primor, firmeza, precisão, exatidão”. Quando conheci minha mulher tinha 55 anos, mas com corpinho de 54 e meio. Já cheguei aos 61, mas o corpinho continua de “segunda idade”, não sou aposentado e toco bateria em duas bandas de rock. Vou me classificar, portanto, de acordo com a geriatria: só vou ficar velho depois dos 75. E olhe lá!
     O que eu queria dizer é que começar uma relação amorosa nessa fase, a maturidade plena, é bem diferente do que quando se é jovem. As coisas já estão nos seus devidos lugares. A pessoa madura sabe que o amor se constrói dia após dia, tenta corrigir defeitos, contornar dificuldades, evitar atritos e sempre manifestar afeição e carinho. As experiências vividas nos ensinam a sermos serenos, livres, tolerantes, generosos, sábios e a termos discernimento. Nessa fase enxergamos a realidade natural, temos uma visão aberta e realista das coisas que realmente importam na vida. Na maturidade percebemos intuitivamente as coisas do espírito e da alma, que nem sempre os olhos enxergam.
     Um relacionamento iniciado nessa etapa da vida não é como casamentos que duram cerca de 50 anos. Apesar de duradouros, percebe-se nesses uma espécie de ranço de convivência. Um bom exemplo disso é o casal Antero e Brígida, da novela Passione. Que não se ofendam os que já estão ou os que estejam chegando lá: toda regra tem exceção.
     Enfim, não é porque esteja no terceiro casamento que vá condenar aqueles que fogem dele, tampouco os que, mesmo querendo, não o conseguem facilmente e o procuram em agências matrimoniais. O casamento acaba acontecendo na vida das pessoas naturalmente, seja qual for a definição que o termo tiver, seja qual for a classificação dada pela sociedade para a relação matrimonial.
     Afinal, a Bíblia diz que Deus falou a Adão e Eva que era para eles crescerem e se multiplicarem e não para “casarem“ e se multiplicarem.
_______________
Fontes
CIFUENTES, Rafael Llano. A Maturidade. São Paulo: Quadrante, 2003.
Assumpção, Wanda. Maturidade. Disponível em http://www.wandadeassumpcao.com.br/artigos/maturidade.htm
Wikipedia. Casamento. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Casamento

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Fogo na guarita



     Já falei várias vezes neste blog sobre o bairro que moro. Em 85% delas falei mal. Assim foi em Galos de Despacho, O leste e o norte, Pichação, O pequeno infrator, As árvores do Partenon e Tô brabo com o padre. Só falei uma vez de coisa boa, que foi em Furnarius Rufus.
     Cá estou pra aumentar a estatística ruim, falando mal novamente. Neste canto distante 7,5 Km de carro (15 minutos) do marco zero de Porto Alegre, ocorreu, ontem, mais uma barbárie.
     Eram mais ou menos três e meia da tarde. Eu estava deitado, quase dormindo, quando um ruído diferente sobressaiu-se ao do vento que soprava por entre as frestas das persianas, sacudindo-as. Sonolento, fiz uma pergunta retórica a minha mulher:
     — Que barulho é este?
     Sem atentar para o ineditismo do ruído, respondeu-me que seria alguém arrastando alguma coisa na rua. Discordei. Era um ruído forte, de algo que crepitava.
     — Acho que não – disse –, barulho de coisa sendo arrastada passa. Este barulho tá ficando!
     Ela se levantou, foi a janela e me chamou:
     — Vem ver!
     Vi e fotografei.


     Tacaram fogo na guarita do guardinha!
     Ficamos apenas observando. Duas gurias de uns 12 anos estavam por ali, meio assustadas. Transeuntes passavam e ficavam olhando. Logo chegou um brigadiano. Ficou olhando de longe, conversou qualquer coisa com a vizinha do apartamento abaixo do meu e fez uma ligação do celular. Imagino que tenha sido para os bombeiros.
As meninas disseram pro “seu guarda” que “tinha uns cinco guri ali dentro”, referindo-se à guarita, e que “saíram tudo correndo e começou a pegá fogo”.
     A guarita, de madeira, fazia um belo fogo. O barulho crepitante era das folhas da árvore sob a qual ela estava. Pobre árvore. Mais uma bela árvore do Partenon sofria pela má ação dos homens (no caso, guris, segundo as gurias).
     Os bombeiros chegaram em seguida, quando o fogo já estava baixo. Jogaram água sobre o que restou da guarita e na árvore, que ficou pela metade.
     À noite, chegou seu Eduardo, o guardinha. Desolado, me cobrou a mensalidade e comentou ironicamente que aquilo era obra de quem muito o amava. Disse que, apesar do infortúnio, permaneceria no posto, mesmo com a fina chuva que caía.
     Não sei se ficou. Levantei de madrugada, espiei pela janela e não o vi.

     Quando vim morar neste fim de mundo pertinho do começo da cidade, o guarda era seu João e a guarita era outra, meio descaída. Além de guarda noturno, seu João fazia uns trocos a mais molhando jardins à tarde. Era um tipo bonachão, gordo, desdentado e risonho. Trabalhava para uma “empresa” de segurança. Tinha um chefe que passava no fim do mês pra recolher a “féria”.
     Certo dia, um caminhão de porte médio perdeu os freios na descida da rua, subiu na calçada, pegou de raspão na guarita descaída e parou na parede da casa em frente. A guarita ficou ainda mais desbeiçada. Teve que ser substituída por outra, que seu João pintou com todo carinho, como se fosse sua própria casa.
     A tal “empresa” de segurança acabou desistindo do negócio, tendo em vista que muitas pessoas da redondeza também desistiram de pagar pelos serviços que prestava. Espertos. Se dois ou três pagavam o guarda, certamente este cuidaria de todas as casas da vizinhança, né?!
     Seu João, no entanto, continuou a zelar pelo patrimônio da vizinhança por conta própria. Envolveu-se emocional e, acredito, sexualmente com uma viúva que morava um pouco mais abaixo. Passava os dias com ela e, à noite, vinha para seu posto. Um belo dia, contudo, a viúva resolveu ir para o interior e levou junto seu João. No seu lugar ele deixou o Eduardo, um amigo que ficava de guarda nas suas folgas.
     Não sei se foi a ausência do seu João ou se o Eduardo não tinha o mesmo carisma. Um dia, a guarita apareceu pichada, e assim permaneceu até ontem, quando foi queimada.
     Não sei o que vai ser, agora, da “segurança” do pedaço. Imagino que o Eduardo vá querer fazer uma vaquinha entre os que o pagavam até ontem, pra erigir nova guarita. Eu fora. Acho que não precisamos de segurança. Apesar da aparência assustadora das noites por aqui, o canto fica há duas quadras de uma das mais conhecidas e famosas bocas de fumo de Porto Alegre. Se depender do Paulão, chefe do tráfico da Vila Maria da Conceição e que, atualmente, cumpre pena, no seu território não tem espaço pra bandidagem.

sábado, 6 de novembro de 2010

Aurélio



     Aurélio não era bem um dicionário, mas quase. Sabia um monte de coisas: previsão do tempo, cotação do dólar, as capitais de todos os estados brasileiros e de inúmeros países, a escalação atual e de todos os plantéis que foram campeões pelo Grêmio, que existe a palavra presidenta e, entre um sem fim de coisas, com quantos paus se faz uma canoa.
     Tinha duas coisas que Aurélio não sabia: relacionar-se bem com outras pessoas e usar computadores.
     Aurélio foi abandonado pela mãe biológica ainda bebê. Acharam-no num terreno baldio, numa cidade do interior gaúcho em que a maioria dos habitantes era de origem germânica. Junto dele estava sua certidão de nascimento sem nome do pai. O nome da mãe, por sua vez, estava riscado, assim como o número do registro e em que livro fora feito. Só se sabia que se chamava Aurélio.
     Um casal estéril, com idade acima do limite para ter filhos biológicos, recolheu-o no abrigo para menores, adotou-o, refez o registro e, em respeito, manteve o primeiro nome. Aurélio Becker passou a se chamar aquele bebê pardo de poucos meses.
     Os pais adotivos de Aurélio, de classe média, lhe deram todo o conforto. O menino usava boas roupas e estudou na melhor escola privada da cidade, desde o ensino fundamental até o médio (naquela época era outra classificação). Não sei se devido à origem germânica, no entanto, o casal não lhe proporcionava muito afeto. Em razão disso, o rapaz era solitário. Arredio, não tinha amigos na escola e até sofria um pouco de bullying.
     Quando terminou o ensino médio, Aurélio manifestou o desejo de transferir-se para a capital, onde faria vestibular, sem saber ainda para o quê. Os pais abriram-lhe uma conta no banco e providenciaram um pequeno apartamento, modestamente mobiliado, no Bom Fim. Trazendo na mala poucas roupas, alguns livros, um rádio portátil e a máquina de escrever com que fazia seus trabalhos escolares, desembarcou na rodoviária de Porto Alegre em 1982. Tinha, então, 17 anos, prestes a completar 18.
     Depois de instalar-se, deu uma volta pelo bairro. Na revistaria comprou um mapa da cidade e um jornal de concursos. Leu que em poucos meses haveria um concurso para agente administrativo na Inspetoria da Receita Federal de Porto Alegre. A exigência era segundo grau completo.
     Aurélio desistiu de fazer vestibular sabe se lá para o que e, desde os 18 anos, é funcionário público federal: agente administrativo. Seus pais adotivos, já falecidos, não se alegraram nem contestaram sua opção profissional. Nesses últimos 27 anos sua vida não tinha sido, até então, muito diferente do que era nos tempos do colégio, quando morava no interior. Não se casou, continuava sem amigos, era tratado com desconfiança e, por sua taciturnidade, motivo de chacota por parte dos colegas. De sua intimidade só se sabia o nome: Aurélio Becker.
     Trabalhava sozinho numa pequena sala que nem vista para a rua tinha. Além dos tradicionais bons dias, boas tardes e até logos, só falava com os colegas para responder-lhes como seria o tempo no fim de semana, qual era o número do telefone da Delegacia da Receita Federal em Roraima, como se chamava o responsável pelos suprimentos, de Brasília, quanto valia o dólar no dia, etc. Vivia grudado no rádio de pilha e sua diversão era ir aos jogos do seu glorioso tricolor, o Grêmio.
     Quando a repartição se informatizou, Aurélio negou-se peremptoriamente a aceitar um computador. Disse que preferia continuar fazendo o que fosse necessário na grande Remington que tinha na mesinha auxiliar, e a qual tratava com tanto cuidado que, ainda hoje, parecia nova, como um objeto de decoração. Quando havia necessidade de distribuir eletronicamente algum memorando ou comunicado, datilografava o texto na Remington e ordenava que um dos estagiários “passasse a limpo” no computador.
     Mas eis que um dia não deu mais pra fazer esse esquema. Uma ordem superior determinou, também peremptoriamente, que Aurélio não poderia mais usar a Remington na execução das tarefas e sim um computador. E foi instalada na sua sala uma máquina com processador Intel Core i7 930 2.8GHz, 4GB de memória, HD 1TB, DVD-RW, Placa de vídeo ATI Radeon HD5770 1GB DDR5... Coisas que Aurélio não tinha a menor ideia do que seriam, mas que constavam da nota que teve que assinar.
     Pediu que um dos estagiários lhe ensinasse a usar tudo aquilo, e foi atendido. O estagiário, prevendo que algum desastre poderia acontecer, instalou no computador um moderno antivírus. Como o programa se atualizaria sozinho cada vez que o computador fosse ligado, achou que nem precisava avisar Aurélio. Mostrou a ele os passos básicos para manuseio da máquina e uso do processador de textos, prometendo avançar aos poucos nos ensinamentos.
     Nos dias que se sucederam, Aurélio já estava frente ao computador quando o estagiário chegava. Um tropeço aqui, outro ali, mas o compenetrado estudante ia aprendendo a lidar com a máquina. Depois de uma semana, Aurélio perguntou ao estagiário quem era o fabricante daquilo que chamavam de antivírus. O rapaz informou o nome, mas nem se importou em saber por que o chefe queria saber. No dia seguinte, perguntou como poderia entrar em contato com o tal fabricante. O estagiário disse que Aurélio deveria entrar no programa que no item Ajuda, na opção Sobre, encontraria um telefone, um email ou, ainda, o endereço de um site.
     Certo dia em que Aurélio estava fora da sala, o estagiário entrou. O programa de email estava aberto e na tela estava escrito o seguinte:


Prezados Senhores

Meu nome é Aurélio Becker, sou servidor da Receita Federal e, em primeiro lugar, venho, por este meio, cumprimentá-los pelo excelente programa antivírus fabricado por Vossas Senhorias.
Em segundo lugar, devo deixar registrado um problema de saúde que estou manifestando, justamente devido a vosso programa. O problema a que me refiro é a insônia. Tenho passado as noites e madrugadas praticamente acordado, pensando. Em meus devaneios, viajo até a sede de vossa companhia, que nem sei onde fica, e vasculho todas as salas em busca de uma mulher. Eu não a conheço, apenas imagino como seja sua aparência. Por isso, procuro-a em algum ambiente que, na minha ideia, concebo como sendo uma sala não muito grande, acarpetada, com uma mesa sobre a qual há um microfone. Assim passo as noites, procurando-a, sem encontrá-la. Nunca passei por isso, insônia, com tanta intensidade, assim como também nunca experimentei apaixonar-me.
Finalmente, para tentar acabar com minha angústia, gostaria que os senhores me informassem o nome e uma forma de contato com a mulher cuja voz macia e determinada me diz todas as manhãs, quando ligo o computador:

— As definições de vírus foram atualizadas.


sábado, 23 de outubro de 2010

O caso da “bolinha de papel”



      Quarta-feira, dia 20, noticiou-se que o candidato José Serra havia sido atingido numa confusão entre militantes petistas e tucanos, durante caminhada em Campo Grande, no Rio de Janeiro. A notícia dizia que Serra fora atingido por um objeto que, segundo o Jornal Nacional, seria uma bobina de fita adesiva. O candidato teria ficado estonteado e, por isso, procurado um hospital onde passou por um exame de tomografia cerebral.
     Com certeza, a maioria dos telespectadores, inclusive os que não gostam do Serra, ficaram revoltados com a confusão beligerante e com a agressão ao candidato tucano.
     Na quinta-feira, no seu telejornal matinal, no entanto, o SBT exibiu a sequência dos fatos e mostrou que Serra fora atingido por uma bolinha de papel na parte posterior da cabeça, e não por algo que o levasse a ficar estonteado e a fazer uma tomografia. A reportagem foi para a internet e a comoção daqueles telespectadores da noite anterior mudou de lado.
     Nessa mesma manhã, em Rio Grande, o presidente Lula, que não consegue ficar quieto, abriu a bocarra pra condenar a atitude do candidato, classificando-o, inclusive, como mentiroso.
     À noite, contudo, a coisa mudou de novo. O Jornal Nacional exibiu imagens — de péssima qualidade — obtidas pelo celular de um repórter do “imparcial” e “isento” jornal Folha de São Paulo, que mostram Serra sendo atingido por um objeto circular e transparente.
     A casa caiu! Perdeu! Perdeu!
     Serra, que era vítima, passou a ser mentiroso e voltou a ser vítima. Lula, que se sentira enganado, passou a ser caluniador.
     É claro que o assunto não iria parar aí. A Globo contratou os serviços do perito Ricardo Molina, da Unicamp, para analisar os vídeos. Em entrevista, disse que o objeto — que parecia ser um rolo de fita adesiva — bateu na região superior da cabeça, frontal superior. Ocorre que o médico Jacob Kligerman — ex-secretário de Saúde da administração Cesar Maia (DEM) e nomeado por Serra a cargo de confiança quando foi ministro da Saúde —, que atendeu o paciente, disse que o objeto que teria estonteado o candidato teria lhe atingido na parte posterior da cabeça.
     A casa caiu de novo! Perdeu! Perdeu!
     Os dois, perito e médico, divergem quanto ao local onde a bolinha de papel e o outro objeto teriam atingido a cabeça de Serra. Resumindo: conforme as imagens, a bolinha de papel atinge Serra por trás; o tal rolo, no alto da cabeça (tanto que é ali que ele passa mão logo em seguida); o perito garante que o que causou o ferimento superficial atingiu a região superior da cabeça, frontal superior; o médico, por sua vez, diz que o objeto que causou o ferimento atingiu a região occipito-parietal (isso fica atrás...).
     Mas o tro-lo-ló ainda não terminou! Novos fatos surgiram. O vídeo feito com o celular do repórter Ítalo Nogueira, da Folha de São Paulo, foi impiedosamente manipulado e editado pela Globo. Não sou eu que estou dizendo. Isto está documentado num vídeo postado no Youtube, ao qual o leitor eleitor deve assistir, clicando aqui, para tirar suas conclusões..
     E então, a casa caiu de vez?
     E agora, José (Serra)? Onde dói? No coco ou no occipito-parietal? Como fica o câmbio flutuante no teu programa de governo? Afinal, o que pode mais: o Brasil, uma bolinha de papel, uma bobina de fita adesiva ou a Rede Globo?
     Como é que o famigerado perito Ricardo Molina não viu que o vídeo da Globo fora manipulado? Será que é porque foi contratado pela empresa para “peritar” as imagens?
     Como é que fica a cabeça do eleitor de acordo com o desenrolar dos fatos ou das “montagens”, sendo ele serrista ou não? Serra foi vítima de militantes petistas? Serra é um farsante mentiroso e Lula um caluniador? A Globo é uma farsante mentirosa, Serra concorda com isso e Lula não é caluniador?
     Você decide.

.:: o ::.


     Vamos, entretanto, dar uma pausa e relaxar um pouco.
     A todas essas, a criatividade, a oportunidade e a agilidade dos caras que fazem animações e joguinhos pra computador andam a mil por hora, mais rápido do que o avanço tecnológico de hoje em dia. Diria até que, se derem mole, a gurizada é mais ágil do que a divulgação dos fatos na internet.
     Mal se começou a comentar nas esquinas, nos bares, bolichos e baladas, nas paradas de ônibus, nas filas do SUS e do INSS, nas igrejas fundamentalistas e nas progressistas, nos consultórios médicos, nas camas das alcovas e nos sofás das salas de estar sobre o episódio da bolinha de papel, ou melhor, do rolo de fita adesiva, já apareceu um joguinho em que jogador tem que acertar bolinhas de papel na cabeça do Serra. Seja você ou não um daqueles indignados com o que aconteceu ao candidato, que depois se indignou com o que teria feito o candidato, que voltou a se indignar com o que aconteceu ao candidato, e que tornou a se indignar com o que fez a Globo, atire umas bolinhas virtuais de papel na cabeça dele clicando aqui.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Uns e outros


     Todos concordam que a campanha eleitoral deste ano está uma baixaria. Ao mesmo tempo em que “um” denuncia que a “outra” é a favor da descriminalização do aborto, aparece uma voz na multidão dizendo que a mulher do “um” praticou aborto; enquanto “um” fala das supostas trampolinagens do filho de Erenice, amiga e substituta da “outra”, esta fala da suposta sacanagem de Paulo Preto, correligionário e amigo do “um”, que desviou uma grana preta do partido. E por aí afora. “Uma” defendendo-se do que insinua o “outro” e vice-versa.
     Até a CNBB envolveu-se na baixaria. Uma tal de Comissão em Defesa da Vida distribuiu, ainda antes do primeiro turno, um “Apelo a todos os brasileiros e brasileiras”, assinado por alguns bispos da Regional Sul 1 da CNBB (São Paulo). O texto relaciona o PT e a presidenciável Dilma Rousseff à defesa da legalização do aborto e recomenda “encarecidamente a todos os cidadãos brasileiros e brasileiras” que, “nas próximas eleições, deem seu voto somente a candidatos ou candidatas e partidos contrários à descriminalização do aborto”. Agora, dois meses depois, o presidente dessa mesma Regional da CNBB condenou a nota. Segundo o texto, o grupo “desaprova a instrumentalização de suas declarações e notas e enfatiza que não patrocina a impressão e a difusão de folhetos a favor ou contra candidatos”. Não é o que pensa, entretanto, o vice-presidente da entidade, que diz que a nota (e o manifesto pensamento nela contido) é legítima.
     Em todas essas, por ordem do Tribunal Superior Eleitoral, a Polícia Federal apreendeu um milhão de panfletos com o conteúdo produzido pela Comissão em Defesa da Vida, em uma gráfica no bairro Cambuci, em São Paulo.
     Vejam até que ponto a igreja está envolvida: terminou em tumulto uma missa na tarde de sábado, dia 16, na Basílica de São Francisco das Chagas, em Canindé, no Ceará, em que estava presente o candidato José Serra. No final de celebração, o padre condenou a distribuição dos panfletos sobre o aborto. Afirmou que as mensagens estavam sendo atribuídas a igreja, mas que ela não havia autorizava este tipo de publicação em seu nome. O senador Tasso Jereissati, que acompanhou a missa ao lado de José Serra, se exaltou e afirmou que era um “padre petista” como aquele que estava “causando problemas à igreja”. Outros partidários do tucano também se exaltaram. O padre saiu escoltado por seguranças.
     Na saída houve um princípio de tumulto entre militantes do PT e do PSDB.
     Do que menos se ouve falar, porém, são de propostas, a não ser nos debates, em dois ou três minutos de resposta e mais um de tréplica, entremeado por uma réplica, entre uma acusação e outra, de parte a parte. E tudo muito bem alimentado pela imprensa.
     Baixaria em campanha eleitoral, contudo, não é novidade. Pra citar uma da era atual: no último debate da primeira eleição livre pós-ditadura, Collor “denunciou” que Lula tinha uma filha fora do casamento e um aparelho 3 em 1. O eleitor, ingênuo, deu crédito a Collor, provocando, no mínimo, 12 anos de atraso político, econômico e social ao Brasil e aos brasileiros. Atraso esse que se reflete na atual eleição.
     Desta vez, quem acabou sendo a estrela do primeiro turno foi a terceira colocada, Marina Silva, que se manteve alheia a ataques denuncistas. No segundo turno, uns e outros passaram a disputar os votos dados a Marina no primeiro. Mas ela ficou em cima do muro, alegando que a posição do PV não é de “neutralidade, mas de independência”. Para Marina, os dois candidatos deveriam privilegiar a discussão sobre propostas.


     De qualquer maneira, esse excesso de acusações e denúncias e a excessiva ausência de propostas pouco mudaram o quadro eleitoral. Agora que a disputa está entre dois, a última pesquisa divulgada (Datafolha, 15/10) dá conta de que, computados apenas os votos válidos, Dilma teria 54% dos votos e Serra, 46%. No primeiro turno, quando nove candidatos disputavam, Dilma obteve 46,91% dos votos válidos, Serra, 32,61%, Marina, 19,33% e os demais candidatos, 1,15%. Tomando-se por base os números da pesquisa, concluo, então, que cerca de 7% dos votos de Marina foram pra Dilma, enquanto 13% deles foram pro Serra. A diferença entre Dilma e Serra, que foi de 14,3% no primeiro turno, estaria, hoje, ainda segundo a pesquisa, em 8%.
     Tenho a impressão de que, tanto pra um como pra outro (ou tanto pra uma como pra outro) correr atrás dos votos da Marina é perda de tempo.

domingo, 10 de outubro de 2010

Liberdade de expressão



     Hoje é um dia especial, faz um ano que comecei este blog. Como diz no cabeçalho, escrevo aqui “coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que tenho vontade de deixar registradas, nem que seja num blog”. Sempre me deu “coisas na telha”, mas apenas as comentava com alguém próximo ou, no máximo, mandava uma que outra para alguma seção “cartas do leitor”. Na maioria das vezes, contudo, não eram publicadas. Quando eram, o editor da seção “moderava” o texto. Resolvi, então, fazer o blog.
     Nunca tive — e ainda não tenho — grandes pretensões com ele. Não o assumi como uma profissão de “blogueiro profissional”. Repito: coisas que me dão na telha, “de vez em quando”... Já me cobraram mais assiduidade, mas não estou muito ligado. Mesmo assim, além do Brasil, já tive acessos de internautas de Estados Unidos, Portugal, Rússia, Argentina, Canadá, França, Alemanha, Ucrânia e Japão. Viva o Google!
     A coisa que me deu na telha pela primeira vez neste blog foi escrever sobre o casamento do meu filho (Um dia especial). Em duas postagens seguidas falei no evento: a primeiro, no dia do casamento; a segundo, um dia depois. A partir daí, de vez em quando, posto alguma coisa que me incomoda ou que me entusiasma.
     Atualmente, o que me incomoda é a campanha anti Dilma que corre solta desde os grandes veículos de comunicação até os mais desconhecidos blogs, passando pelas nossas caixas de entrada, diariamente. Alguém até se deu o trabalho de compilar todas as falsidades que rolam pelos emails e desmenti-las, desmascarando seus criadores. Procure a Central de Boatos e confira você mesmo.
     Isso me fez pensar na liberdade de expressão. As pessoas que criam esses emails — não sei a troco de quê — alegam que estão usando sua liberdade de expressão. Ledo engano. O que fazem não é o uso da liberdade de expressão. Assim o seria se dissessem que não votariam em A ou B porque não concordam com suas atitudes, ou seus programas de governo, etc. Ou o contrário disso, sempre respeitando o que outros pensem a respeito. Agora, inventar histórias com o intuito de prejudicar um ou outro costuma-se chamar de mentira, de mau caratismo!
     Enfim, liberdade de expressão é um tema que, pela complexidade, não se esgota apenas numa postagem. Vou contar uma história do porquê me desiludi com o hipócrita jornalismo tradicional.

.:: o ::.


Liberdade de expressão

     Em 1984, durante uma grande greve dos funcionários públicos federais, especialmente das universidades — entre os quais me incluo até hoje —, resolvi fazer valer explicitamente meu diploma de jornalista. Só tinha precisado dele para entrar no serviço público federal, em cargo e função exercida por jornalistas, e para dar aulas de radiojornalismo numa outra universidade, só que privada.
     Falei em fazer valer explicitamente meu diploma porque fui convidado para trabalhar na emissora de rádio de uma das duas maiores empresas de comunicação do Estado. Imagino que não tenha sido minha competência o principal motivo do convite. A empresa — então com 89 anos — passava por uma séria dificuldade financeira, muitos funcionários abandonavam o barco, os salários estavam atrasados, fornecedores ficavam na mão e corriam dezenas de ações contra ela nas diversas instâncias judiciais.
     Como estava em greve, e as aulas que ministrava na universidade privada não me consumiam muito tempo, resolvi aceitar o desafio. Comecei como redator de notícias num horário em que ninguém queria trabalhar: das 18 às 23 horas. Havia a promessa de que logo poderia trabalhar num horário melhor.
     Não demorou muito estava redigindo notícias para os radiojornais vespertinos e, especialmente, para as edições das 18h50 e 20h30 do então importante e famoso Correspondente Renner. O leitor mais “experiente” já deve saber de que empresa estou falando. Para os mais novos eu digo: a empresa era a Caldas Júnior; a rádio, a Guaíba.
     Também não levou muito tempo para que — desta vez por terem sido reconhecidas minha competência (e minha modéstia) — eu fosse alçado ao cargo de editor. Os salários estavam em dia, o quadro de funcionários se estabilizara, o serviço fluía normalmente e a liberdade de expressão não era muito controlada. A imprensa, em geral, recém havia saído de um longo período de censura imposto pelos sucessivos governos militares. Falava-se muita coisa, mas bem menos do que hoje. O presidente era o Sarney, em quem nenhum de nós, eleitores comuns, tínhamos votado e que assumira devido à morte de Tancredo Neves, em quem também não tínhamos votado. Pelo menos ambos eram civis.
     Eis que a empresa foi vendida pelos antigos proprietários e comprada por um economista e empresário de soja. Gente que tinha dinheiro, mas nada a ver com jornalismo. Seus parentes todos ganharam cargos nos veículos do grupo. Conta uma lenda que a mulher do novo patrão, indicada ao cargo de diretora da TV, queria acarpetar o piso dos estúdios, porque achava muito feio aquele cimento por onde rodam suavemente os tripés das câmeras. Não sei até que ponto é verdade.
     A direção da rádio ficou com o irmão do empresário, um arquiteto por formação. Numa bela tarde, ao chegar para trabalhar, fui chamado à sala do arquiteto, digo, do diretor. Em lá chegando, do alto de seus cerca de 1,55m, o arquiteto, digo, o diretor, sem nem me convidar a sentar, jogou na minha frente, sobre sua mesa, uma das notícias que haviam sido veiculadas na última edição do Correspondente Renner do dia anterior. Era uma notícia daquelas pra completar os 10 minutos do radiojornal, que eu mesmo havia redigido, e que cujo fato até já tinha sido noticiado na Veja. Ela falava de um então ministro da Justiça que voltava ao Sul todos os fins de semana em jatos da FAB.
     Nem preciso dizer que, a partir desse dia daquele abril, deixei de fazer parte dos quadros de funcionários da Rádio Guaíba, sob a alegação de que o ministro pedira a cabeça do responsável (no caso, a minha).
     Indignado (mas não inconformado), no dia seguinte, falei com um conhecido, assessor direto do ministro em questão. Ele disse que o ministro não sabia nem da notícia, quanto mais que teria pedido a demissão.
     Acreditei. Esse seria mais um caso daqueles em que o súdito é mais realista do que o rei.
     Era 1988, ano de eleição para prefeitos e vereadores. A outra grande empresa de comunicação do Estado deslocava muitos de seus jornalistas para uma central de eleições. Precisava, então, de gente que segurasse o piano do cotidiano. Fui chamado para ser um desses carregadores, das seis da manhã até uma da tarde, temporariamente, até as eleições.
     Nessa empresa, na qual também assumia como editor, já foram me avisando: só se fala em greve quando ela realmente começar; procura-se não falar no PT, a não ser que seja fato muito relevante, etc. Acontece que um dos candidatos à prefeitura era Olívio Dutra, do PT; Acontece, também, que, naquela época, diariamente servidores públicos, petroleiros metalúrgicos e trabalhadores de outros setores viviam ameaçando entrar em greve. Impossível viver-se sem falar no PT e em greves, naquela ebulição toda.
     Várias vezes fui chamado à sala de uma das tantas pequenas autoridades daquela empresa pra ser repreendido por ter violado as regras e, consequentemente, a liberdade de expressão do senso comum, casualmente contrária à liberdade de expressão do grupo.
     Finalmente, numa misteriosa virada das pesquisas, Olívio Dutra foi eleito prefeito. Acabou-se meu período de jornalista temporário. Passados alguns dias, recebo o telefonema de uma daquelas pequenas autoridades me convidando para trabalhar permanentemente na função que exerci temporariamente. Agradeci a lembrança e recusei amavelmente. Não disse a ele, mas esse tipo de jornalismo não me seduzia.
     Muito se tem falado na tal liberdade de expressão. Grandes veículos e importantes (se é que dá pra se classificar assim) jornalistas têm gritado aos quatro cantos que o presidente Lula quer acabar com a liberdade de expressão no Brasil. Comparam-no com Hugo Chavez, que costuma fechar emissoras que não têm o mesmo pensamento dele. Então eu pergunto: como é que fica a liberdade de “expressão” do presidente Lula? Essas empresas e esses jornalistas se julgam representantes da opinião pública, que dá ao presidente Lula 80% de popularidade. A quem representam, então, esses veículos e seus servis jornalistas? Por óbvio, a si mesmos.
     Na semana que passou, aconteceu um fato interessante. O assunto não é novo, foi reproduzido e repercutido em vários blogues e sites de notícias, mas remete ao título desta minha crônica.
     O jornal “O Estado de São Paulo” declarou apoio a José Serra desde o primeiro turno.Tudo bem. Eles têm essa liberdade de se expressar. A campanha de Serra diz que Dilma e o PT são contra a liberdade de expressão e que querem controlar a imprensa. A psicanalista Maria Rita Kehl, colunista do Estadão, publicou, no dia anterior ao primeiro turno, um artigo chamado “Dois pesos...” sobre a desqualificação do voto popular. No texto, a colunista considerou digna a atitude do jornal de declarar explicitamente seu apoio a um dos candidatos. De resto, implicitamente, Maria Rita aplaude a popularidade de Lula, os programas sociais do governo e critica aqueles que menosprezam o voto dos pobres.
     A coluna finaliza assim:


Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

     A colunista Maria Rita Kehl foi hipocritamente demitida do Estadão. Que bom pra ela não mais fazer parte daquele grupo que pretende ser da camarilha de Serra.
     Assim são muitas das empresas de comunicação no Brasil: faça o que eu digo mas não faça o que eu faço. Noutras palavras: use a liberdade de expressão mas critique os que a usam.

______________________

     Leia a coluna “Dois pesos...”, de Maria Rita Kehl, no Estado de São Paulo
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101002/not_imp618576,0.php
     Leia a entrevista da colunista após sua demissão
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4722228-EI6578,00-Maria+Rita+Kehl+Fui+demitida+por+um+delito+de+opiniao.html