Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A matança do porco


     Fim de ano, invariavelmente, a gente remexe em armários e gavetas, em busca de coisas antigas que se guardou pra nunca usar. E quanta coisa se guarda sabendo que não vai usar. Quanto papel!
     Fiz isso e encontrei textos que escrevi em meados da década de 70. Estavam numa velha pasta de um congresso que nunca fui. Dei uma lida, uma revisada e, não contente em tê-los guardado por tantos anos em papel, vou deixá-los aqui, a partir de hoje, para guardá-los também neste meio virtual. Pelo menos não ocupam espaço na gaveta...
     Começo com este texto que fiz depois de ouvir música homônima de um grupo mineiro chamado “Som Imaginário”. A música é “A matança do porco”. Ouça-a.



























     Se você se interessa pelo assunto, clique aqui. Caso contrário, passe de imediato à leitura do texto.


A matança do porco


     Vi quando eles saíram da velha casa de madeira plantada na coxilha verde e de raízes entrelaçadas às da figueira que lhe faz sombra. Desceram os trêmulos degraus que gemiam ao peso do ar morno. O mais gordo, que poderia ser o patrão, ficou no vestíbulo. Olhava para o nada a procura de tudo. Procurava um modo de medir tudo sem fazer nada. Atirou o chapéu desbeiçado acima da testa e largou sua gordura num caibro carunchado que ainda sustentava a varanda de telhas desbotadas.
     Os outros, sem demonstrar alguma vontade, caminhavam para cá, trazendo o mormaço nos olhos, covas profundas que davam a impressão de estarem cheias de vermes. Suas roupas, rotas, poucas, não tinham cor. Eram amontoados de remendos que pareciam viver há mais tempo do que quem as vestia. Todos ainda usavam as botinas que ganharam no quartel, há muito tempo, quando, nas horas vagas, o velho patrão era coronel. Nada faltava aos seus naquela época. Agora, já estava morto e esquecido, mas as botinas ainda serviam àqueles pés fiéis.
     Chegaram ao portão do curral e soltaram os seus sovacos nos tocos horizontais que o formavam. Dentro, uns cavalos magros apoiavam-se uns nos outros e duas vacas velhas arrancavam os últimos tufos de pasto que restavam.
     Viraram-se automaticamente sem tirar o corpo do portão e fixaram silenciosamente a longínqua serra. Por um momento, pareceu-me que eles pensavam. E com certeza era nas mulheres da cidade. Há quanto tempo não visitavam aqueles quartos perfumados onde havia uma mistura de loções masculinas. Cada cheiro era de um homem diferente que ali entrava. E isso era de meia em meia hora, o dia todo, a vida toda. E cada homem tocava em outro e saía com o cheiro de todos. Todos iguais, como as mulheres que lhes cheiravam.
     Dois urubus que passaram voando baixo fizeram com que despertassem e caminhassem um pouco. Vieram na minha direção e um súbito vento trouxe o cheiro que talvez tivesse atraído os pássaros carniceiros. O odor saía deles como os vapores saem do chão nos dias quentes. As galinhas que ciscavam por ali correram cacarejando, assustadas.
     Perto havia pequenas árvores, crianças ainda. Pegaram nos seus facões e começaram a cortá-las como se estivessem em mais uma batalha, numa guerra contra os indefesos galhos verdes. Seus ramos, débeis e perfeitos, saltavam para os lados sangrando. Se tivessem voz chorariam. Cada um cortou uma. Restaram outras de sorte duvidosa, futuro incerto. Rasparam os troncos até ficarem lisos. Agarravam e apertavam nas mãos aquelas novas armas. Para mim eram armas. Para eles talvez fossem lápis. Lápis que os ignorantes usam para escrever com o sangue dos outros a afirmação de seu machismo. Giravam-nas e davam golpes no ar quente. Nos poucos dentes que tinham, via-se um sorriso de ódio. As coroas de ouro brilhavam ao sol que fugia para oeste.
     Meteram-se numa brincadeira de imbecis. Batiam os cacetetes uns nos outros e gritavam como demônios, correndo em roda. Às vezes um caía ao chão o os outros se punham a rir e a jogar-lhe terra com os pés. Assim ficaram por algum tempo até repararem na minha amedrontada presença.
     Falaram qualquer coisa. Combinaram algo sinistro, como pude ver pelo brilho dos seus olhos. Não sei se por isso ou por que, afastei-me devagar. Olhei para trás e vi que me seguiam. Apressei o passo das minhas pequenas pernas. Eu estava gordo e não podia correr muito. Cercaram-me. Cada um de um lado e sempre chegando perto. Bradavam as armas e soltavam grunhidos que se perdiam pelos campos virgens. Não sabia pra qual lado ir. Virei para trás e o sol caído ardeu-me nos olhos. Tinha que haver um modo de fugir. Estava com medo.
     Quantas vezes maldisse aquela terra crua, aquele ambiente sem chances para mim. Naquele lugar só se comia para sobreviver. Eu queria mais, um pouco mais. Um lugar seguro onde dormir. Uma comida melhor, não só restos. Uma fêmea. Talvez com uma companheira eu até ficasse por ali. Eu viveria em qualquer pocilga. Quando cheguei, nos tempos do coronel, havia muita esperança. Ainda era pequeno. Nunca mais soube de meus pais. O lugar era mais decente, a comida era melhor. Tinha um canto só para mim. Era bom.
     Em relâmpagos voltava o meu passado. Não havia muita coisa para recordar. Foi tudo uma sucessão de esperanças. Algum dia haveria de ser melhor que o anterior.
     E os porcos com seus porretes acercavam-se, acuavam-me. Comecei a berrar não sei por quê. Talvez para ganhar forças ou para atrair a atenção de alguém. Mas quem me ouviria naquele fim de mundo deste mundo sem fim? Eu berrava e corria em círculos. Parei um pouco e vi, em cima da cerca, os urubus que passaram antes. Tinham um olhar estranho aquelas bestas fétidas. E que pressentimento: sabiam que sobraria algo para eles ou foi o cheiro dos porcos de porrete que os atraiu?
     Senti nas costas uma pontada quente. E outra. Rolei para o lado grunhindo. Um deles escorregou e caiu ao meu lado. Era uma chance. Pisoteei-o e escapei pelo buraco que se formou na barreira. Não fiquei só por muito tempo. Em seguida comecei a sentir novamente as pancadas. Os seus berros agulhavam-me os ouvidos. As pancadas ardiam-me na carne e nos ossos. Fiquei tonto, mas não parei de correr e berrar.
     Bem que eu poderia parar e esperar calmamente a presença da morte. Em pouco tempo, então, eu seria apresentado a ela e não haveria mais pauladas, agulhadas, dores e odores. Mas restava a esperança. Eu, que vivi até aquele momento com ela, não poderia abandoná-la. Continuaram as pauladas. Meus grunhidos diminuíram, os deles aumentaram. A força começou a me fazer falta e a dor era insuportável. Tombei.
     Ao longe ouvia as risadas desdentadas. Abri os olhos com esforço e o que vi fez-me fechá-los de novo. Um deles largara o porrete o desembainhava a sua faca suja. Recomecei a berrar quando senti várias mãos grandes tocarem o meu corpo moribundo. Foi o mesmo que nada. A esperança, a velha companheira, foi-se embora. Num último grunhido senti meu corpo cansado ser perfurado abaixo da pata dianteira esquerda por uma lâmina com gosto de terra e cheiro de carne seca. Agora eu poderia conhecer a morte. Sem mais dor, sem mau cheiro, sem restos e sem frustrações. Agora eu teria um lugar só para mim.
     Mas qual não é minha decepção, meu corpo pendurado no gancho frio do açougue. Qual não é minha frustração estar ao lado de bois, vacas e galinhas que se renovam diariamente. E eu sempre aqui, esperando, sentindo o mau cheiro destas carnes velhas e gordas. Pelo pouco que devo ter rendido — talvez meia hora com uma das mulheres do bordel —, bem que poderia ter sido deixado aos urubus. Enfim, dói-me mais do que as pauladas saber que espírito de porco não tem lugar algum em outro mundo.

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