Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







terça-feira, 30 de novembro de 2010

A "formidável" carga tributária



     Cá estou de novo pra falar da “formidável” carga tributária aplicada a todos nós, brasileiros. Antes, contudo, quero explicar por que escrevi formidável entre aspas. Antigamente, o termo significava “que inspira grande temor; que é perigoso; que tem aspecto terrificante”. Esta definição consta nos dicionários como obsoleta. Mas há outras acepções. De acordo com o brasileirismo — palavra ou locução própria de brasileiro —, formidável significa “muito bom, muito bonito; admirável, excelente, magnífico”. As acepções usuais, por sua vez, dizem que formidável é aquilo “que é acima do comum pela força, pela intensidade; descomunal, colossal”; ou “que desperta respeito, admiração ou entusiasmo”.
     O meu formidável entre aspas, por óbvio, não se refere ao brasileirismo, nem a algo que seja muito bom, muito bonito, admirável, excelente ou que desperte respeito, admiração ou entusiasmo. Diz respeito à definição obsoleta e, também, ao primeiro dos significados atuais. Pra mim, a carga tributária brasileira inspira grande temor, é perigosa, tem aspecto terrificante, é acima do comum pela força, pela intensidade, é descomunal e colossal.
     Visitei o site do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), que é uma entidade de difusão do planejamento tributário como instrumento empresarial, visando a demonstrar as várias modalidades de redução legal da carga tributária empresarial. Fiquei sabendo que a arrecadação de impostos no Brasil chegará a R$ 1,2 trilhão até o fim do ano. Isso quer dizer que cada brasileiro estará desembolsando R$ 6,7 mil até 31 de dezembro de 2010. Se levarmos em conta, por exemplo, que 12 milhões de brasileiros estavam desempregados (dados de outubro) e que 44,5 milhões têm até 14 anos, o desembolso mensal do brasileiro produtivo subirá para R$ 8,9 mil. Isso, é claro, em números gerais. Se dividirmos a população produtiva em salários percebidos, teremos uma classe média pagando uma verdadeira fortuna de impostos por ano.


     O IBPT mantém no ar o Impostômetro, que registra em tempo real o que o brasileiro está pagando em impostos para união, estados e municípios. No exato momento em que escrevo este texto (16h00min de 30/11), o Impostômetro revela que R$ 1.130.109.977.541,86 estão sendo arrecadados no Brasil. Desde que olhei, pela manhã, exatamente às 10h08min38s, o montante arrecadado de tributos já aumentou R$ 900.092.204,72!
     E não tem que chega! Estão pensando em recriar a CPMF com novo nome: Contribuição Social para a Saúde (CSS). Segundo o Instituto, se o imposto for reeditado nos moldes anteriores, com uma alíquota de 0,38% sobre qualquer movimentação financeira, poderá representar um acréscimo de R$ 65 bilhões na arrecadação federal. “A grande massa da população brasileira está no sistema financeiro e terá que pagar o tributo. Mas os mais prejudicados serão os consumidores da classe média emergente, que estão entrando agora no mercado de consumo”, diz Silvânia Araújo, economista-chefe da Federação do Comércio do Estado de Minas Gerais (Fecomércio), em entrevista ao Correio Braziliense. Segundo ela, essa camada da sociedade já paga altas taxas de juros para ter acesso ao crédito e verá a renda disponível para o consumo ou para a poupança reduzida.
     Ainda de acordo com a matéria, nas empresas, quanto maior o número de elos da cadeia produtiva, maior será a arrecadação final com a contribuição. Segundo cálculos do IBPT, o tributo aumenta os custos dos produtos no país, na média, em 1,5%. O preço de um automóvel Gol 1.0 total flex, quatro portas, que custa R$ 29.640 na tabela Fipe, poderá subir para R$ R$ 31.122 com a recriação da CPMF. Do mesmo modo, uma calça jeans de R$ 160 passará a custar R$ 162,40. O impacto sobre o preço final é maior do que a alíquota porque o cálculo é feito de maneira embutida e incide, em cascata, em todas as etapas de produção.
     “Esse é um tributo medieval, porque não é aplicado sobre a geração de riquezas e sim sobre a circulação do dinheiro. Por isso, distorce a economia e reduz a eficácia do sistema tributário”, avalia o economista Cláudio Gontijo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
     Mas não é só em arrecadação que o Brasil é “generoso”. Estudo do IBPT revela que são editadas 46 normas tributárias por dia útil no Brasil. Do total de 4.155.915 normas gerais editadas nos 22 anos da atual Constituição Federal, 541.100 (13,02%) estão em vigor, enquanto que das 249.124 normas tributárias editadas neste período, o número chega a 18.409 (7,4%).
     Desde a promulgação da Constituição foram editadas 154.173 normas no âmbito federal, uma média de 19,19 por dia ou 28,72 normas federais por dia útil, enquanto os estados editaram 1.095.279 normas, o que dá 5,05 norma/dia ou 7,56 norma/dia útil. Já os municípios são responsáveis pela edição de 2.906.463 normas, considerando que existem 5.567 municípios no Brasil, cada um deles editou, em média, 522,09 normas neste período.
     Do total de normas editadas no Brasil nestes 22 anos, cerca de 6% se referem à matéria tributária. São 28.591 normas tributárias federais (11,5% das normas tributárias), 83.516 normas tributárias estaduais (33,5% das normas tributárias) e 137.017 normas tributárias municipais (55% das normas tributárias). Em média foram editadas 31 normas tributárias/dia ou 1,3 norma tributária por hora e 46 normas tributárias/dia útil ou 5,8 normas por hora/útil.
     Segundo o coordenador de estudos do IBPT, Gilberto Luiz do Amaral, a legislação brasileira é um emaranhado de temas. “É um conjunto desordenado de assuntos, tornando praticamente impossível que o cidadão conheça e entenda o seu conteúdo.”
     Voltando aos impostos. Há pouco mais de um ano, tive um problema com a Receita Federal: não estava recebendo a restituição do Imposto de Renda Retido na Fonte. Depois de muita pesquisa, descobri que não poderia declarar o que pagava de plano de saúde para meus filhos porque eles já não eram mais meus dependentes para fins de imposto de renda. Um absurdo, uma vez que a gestora do plano estava pagando imposto pelo recebimento daquele valor.
     Classifico como absurdo porque, pela lógica, com o que pago de imposto anualmente não deveria bancar um plano de saúde privado para a família, meus filhos poderiam ter estudado em boas escolas públicas. Se houvesse uma contrapartida justa, eu — e acredito que a grande maioria — pagaria impostos com prazer; não seria necessário haver um Impostômetro para “denunciar” a festa arrecadatória; haveria menos analfabetos, menos criminalidade e melhor tratamento aos doentes. Resumindo: teríamos retorno dos impostos pagos em investimentos, no mínimo, em saúde, educação e segurança pública.
     Entre os 26 países com maior tributação direta sobre, por exemplo, salários, o Brasil está em segundo lugar (42,5%), ficando atrás apenas da Dinamarca, com carga tributária de 42,9%. Na Argentina, os tributos sobre salários somam 27,7% e nos Estados Unidos, 24,3%. Mas há uma diferença: os tributos incidentes sobre os salários na Dinamarca revertem em excelência nos serviço de saúde, educação e segurança. Já no Brasil, devido à precariedade do atendimento em hospitais públicos, grande parte dos trabalhadores precisa pagar planos de saúde privados; para ter boa educação, precisa pagar escola particular. Além disso, como o teto de aposentadoria do INSS é muito baixo, quem quiser uma renda melhor no futuro tem que pagar previdência privada.
     Não estou aqui criticando esse ou aquele partido nem um ou outro político, mas sim um sistema podre que, me parece, não tem solução.

sábado, 27 de novembro de 2010

Culpa, remorso e arrependimento



     Aconteceu no dia 17 passado. Douglas perdeu a bola no meio do campo. Ela sobrou para Messi, que correu em direção a gol sem ser parado por ninguém da seleção brasileira. Resultado: Argentina 1 x 0 Brasil, aos 46 do segundo tempo.
     Imediatamente, especialistas, comentaristas e entendidos em geral decretaram que a culpa da derrota era de Douglas.
     Não se assuste. Este texto não é sobre futebol. É sobre culpa, aquilo que os dicionários definem como “conduta negligente ou imprudente, sem propósito de lesar, mas da qual proveio dano ou ofensa a outrem; falta voluntária a uma obrigação, ou a um princípio ético; atitude ou ausência de atitude de que resulta, por ignorância ou descuido, dano, problema ou desastre para outrem”, entre outras acepções em rubricas específicas.
     No caso da seleção brasileira em seu amistoso com a Argentina, é muito fácil criticar Douglas e culpá-lo pelo fracasso. Ocorre que qualquer um poderia ter perdido a bola e deixá-la sobrar para Messi carimbar a rede brasileira. Eu me arrisco a dizer que a culpa foi de quem deveria estar dando cobertura na eventualidade de a bola ser roubada no meio de campo; poderia dizer que a culpa foi do treinador, por não ter alertado sobre esse perigo ou, noutra hipótese, ter colocado em campo um jogador que não estivesse à altura da seleção. Dizem que a melhor defesa é o ataque. Pois então a culpa é do ataque, que não foi eficiente.


     A culpa atribuída à Douglas pelos entendidos se dá no plano objetivo ou intersubjetivo, que é quando um grupo, ao avaliar atos que resultaram em prejuízo a outros, atribui a responsabilidade a um indivíduo. No sentido subjetivo, a culpa é um sentimento que assume a consciência de um sujeito quando este avalia negativamente seus atos e sente-se responsável por falhas, erros e imperfeições. Não foi este o caso em tela, uma vez que Douglas não se sentiu culpado.
     A culpa também é tratada pela psicologia, pela religião e pelo direito.
     No direito penal, culpa refere-se a ato voluntário, proveniente de imperícia, imprudência ou negligência, de efeito lesivo ao direito de outrem; fato, acontecimento de que resulta um outro fato ruim, nefasto; consequência, efeito. É, portanto, um erro não proposital. Diferencia-se do dolo porque, neste, o agente tem a intenção de praticar o fato e produzir determinado resultado: existe a má-fé. Na culpa, o agente não possui a intenção de prejudicar o outro, ou produzir o resultado. Não há má-fé. Para o direito civil, culpa é falta contra o dever jurídico, cometida por ação ou omissão e proveniente de inadvertência ou descaso.
     No sentido religioso, a culpa advém de um ato da pessoa que recebe avaliação negativa da divindade, por se constituir na transgressão de um tabu ou de uma norma religiosa. A sanção religiosa é um ato social, e pode corresponder a repreensão e pena objetivas. De outra parte, a culpa religiosa compreende também um estado psicológico, existencial e subjetivo, que propõe a busca de expiação de faltas ante o sagrado como parte da própria experiência religiosa. Neste sentido, o termo pecado está geralmente ligado à culpa.
     A psicologia, por sua vez, examina a culpa como sentimento de culpa ou remorso. O sentimento de culpa é o sofrimento pelo qual passa o indivíduo depois de reavaliar um comportamento tido como reprovável por si mesmo. Para esta ciência, a culpa é um sentimento como qualquer outro, que pode ser tratado terapeuticamente.
     Na mesma trilha da culpa andam o remorso e o arrependimento (que não são a mesma coisa).
     Remorso é um sentimento praticado por alguém que acredita ter cometido um ato que infringe um código moral ao qual obedece. Dessa forma, torna-se (ou acredita ter se tornado), por isso, passível de alguma condenação e punição. Como não quer sofrer tal punição, pune-se, então, de alguma maneira mais suportável. Quem sente remorso, no entanto, não está verdadeiramente arrependido do mal que causou a terceiros. Está apenas motivado pelo medo da punição do meio social em que vive ou de uma entidade superior, punindo a si mesmo de alguma maneira. Uma forma de autopunição é, por exemplo, forçar-se a se entristecer, que é a manifestação mais comum do remorso. Alguém com remorso entende que ao se autopunir terá seu erro redimido, fugindo de uma punição que seria ainda mais severa.
     Arrependimento, por sua vez, quer dizer mudança de atitude, ou seja, atitude contrária àquela tomada anteriormente. O arrependido verdadeiramente percebe e se sensibiliza das consequências ruins que seus atos causaram para outras pessoas. Essa sensibilização à dor alheia leva o arrependido a uma tristeza verdadeira pelo dano sofrido pelos que prejudicou. E, como consequência, o arrependido toma a firme decisão de não mais cometer o mesmo erro, para não mais causar mal a outros. O arrependimento pode também ser considerado como a dor sentida por causa da dor causada.
     Ao falar em culpa, remorso e arrependimento, lembrei que num dos textos judaicos encontra-se a citação: “a própria consciência é o mais feroz acusador do culpado”. Ao falar em citação, lembrei de outras:

“A maior punição do homem é o remorso." (Miguel Couto)

“Existe, sem dúvida, um remédio para cada culpa: reconhecê-la”. (Franz Grillparzer)

“Da primeira vez que me enganares, a culpa será tua; já da segunda vez a culpa será minha”. (Provérbio Árabe)

“O culpado que se arrepende não está perdido”. (Demócrito)

“A vigília é a penitência maior; por isso foi escolhida a insônia para companheira do remorso”. (Coelho Neto)

“Quando se culpa os outros, renuncia-se à capacidade de mudar”. (Douglas Adams)

“O remorso é a única dor da alma que o tempo e a ponderação não conseguem nunca acalmar”. (Delphine)

“Errar é humano. Botar a culpa nos outros, também”. (Millor Fernandes)

“É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro”. (Raul Seixas)

“Todos são culpados mas ninguém tem culpa”. (Bob Hoffman)

“Todo o homem é culpado do bem que não fez”. (Voltaire)

“O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros”. (Confúcio)

“Quando ficam uns a atirar a culpa para os outros, a culpa, podem crer, é de todos”. (Mário Negreiros)

     Como se vê, muitos já trataram do tema. Mas essas citações e pensamentos foram proferidos, na maioria dos casos, por pessoas ilustres. O que eu gostaria de saber é como age a consciência de quem pratica um crime bárbaro, um homicídio por motivo fútil, como uma briga no trânsito, uma rusga familiar, etc. A culpa, salvo raras exceções, é provada. O improvável é se o criminoso arrependeu-se ou se sente remorso.

domingo, 21 de novembro de 2010

Monstrengos tinhosos



     A notícia não é nova. Saiu em todos os jornais e noticiários de rádio e TV. Reproduzo a notícia publicada no Estadão, em 09 de novembro.

CNJ afasta juiz que classificava Lei Maria da Penha como ‘monstrengo tinhoso’

     BRASÍLIA - O juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), acusado de machismo no julgamento de processos relacionados à Lei Maria da Penha, foi posto em disponibilidade pelo Conselho Nacional de Justiça por 9 votos a 6. Por pelo menos dois anos, ele ficará afastado do trabalho, recebendo vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.
     No caso que levou à abertura do processo, em 2007, o juiz dizia ver “um conjunto de regras diabólicas” e afirmava que “a desgraça humana começou por causa da mulher”. Além disso, o magistrado considerava a Lei Maria da Penha absurda e a classificava como um “monstrengo tinhoso”.
     “Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”, afirmava o juiz em sua decisão. “Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões”, acrescentava.
     No julgamento, os conselheiros colocaram em dúvida, além da imparcialidade e cumprimento funcional, a sanidade mental do magistrado. Alguns dos seis conselheiros, que votaram apenas pela censura ao magistrado, propuseram que o juiz fosse submetido a exames de sanidade mental. A decisão do Conselho levou em consideração, mais do que os termos da decisão do juiz, as declarações feitas à imprensa e a divulgação dos argumentos.
     Por conta da decisão do CNJ, depois dos dois anos que ficar afastado, o magistrado terá de provar estar “curado do machismo” ou do suposto desequilíbrio mental. “Esse magistrado não tem equilíbrio, seja pelo preconceito que demonstrou nas suas decisões, seja pelos debates que travou (sobre a Lei Maria da Penha) pela imprensa”, afirmou o conselheiro Felipe Locke. “Lamento muito que um magistrado pense dessa forma do gênero que lhe deu a vida. É lamentável que o magistrado pense dessa forma das mulheres”, acrescentou o conselheiro Marcelo Nobre.
     O vice-presidente do CNJ, ministro Carlos Ayres Britto, afirmou que o juiz, nas suas decisões, incitou o preconceito contra a mulher, o que é vedado pela Constituição. “A decisão toca as raias do fundamentalismo. Foi uma decisão obscurantista”, criticou. “O juiz decidiu de costas para a Constituição”, acrescentou.

(...)

     Vozes, ou melhor, textos repercutiram o fato na internet. Destaco um, a favor do juiz punido, que encontrei num site chamado “textosterona”.

Juiz é suspenso por ser machista

     Não estou sozinho. Descobri que tenho mais um companheiro nessa luta para reestabelecer a ordem mundial. O juiz Edilson Rodrigues, da Comarca de Sete Lagoas (MG), foi suspenso por 2 anos por proferir sentença machista. Em uma sentença dada, em 2007, em processo que tratava de violência contra a mulher, ele utilizou declarações machistas para criticar a Lei Maria da Penha. O juiz afirmou, por exemplo, que “o mundo é masculino e assim deve permanecer”. E também manifestou a mesma posição em seu blog na internet e em entrevistas à imprensa.

     Veja, agora, o que propõe o “textosterona”.

     O Blog Textosterona surgiu com o intuito de quebrar alguns mitos. Dentre os principais, o de que homem também sabe escrever, PORRA! E mulherzinhas machinhas também sabem. Como a maioria das boas ideias surgem em botecos, esta também não poderia ser diferente. Formado por um grupo de amigos altamente suscetíveis à cachaça, transmitiremos um pouco dos assuntos debatidos em meio a total embriaguez. Então, não espere grande coisa, mas espere se identificar bastante com os temas abordados. Se você não se identificar, certamente você não tem uma turma foda ou não bebe. E na boa? Não confiamos em quem não bebe.

     Leia quem são e como se descrevem os espermatozoides autores do “textosterona”:

     Renatto Neves - O mais completo paradoxo perfeito. Sou o protótipo da confusão. Uma mistura sutil de valores que intrigam a todos, inclusive a mim. Dono de opinião e cabeça dura. Ouvido e ombro de várias amigas, o que me rendeu grandes conhecimentos no âmbito feminino, pronto pra ser despejado em caracteres.
Viktor Medeiros - Um jovem com boas intenções. Rá! Pegadinha do malandro. Mas, podem contar comigo farei de você um verdadeiro RESENHA.

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     Até aí morreu Neves. Coisa de guri com sérios problemas emocionais relacionados à homossexualidade. Apenas mais dois “monstrengos tinhosos”. O que considerei mais grave foi a opinião do desembargador Carlos Cini Marchionatti, do Tribunal de Justiça do RS, publicada na coluna In verbis, do Correio do Povo de 21 de novembro (domingo), que reproduzo abaixo.

As mulheres, deusas da beleza e o direito de defesa e de opinião

     Sério acontecimento não está sendo devidamente observado.
     Assisti à recente sessão do Conselho Nacional de Justiça que afastou magistrado mineiro por ter cometido excesso de linguagem preconceituoso à mulher em sentença judicial datada de 2007. Foi ele afastado da jurisdição.
     Após a defesa, o presidente do Conselho Federal da OAB pediu a palavra e pronunciou-se pela punição exemplar.
     Este pronunciamento caracteriza exorbitância em relação às finalidades estatutárias da OAB e grave ofensa ao direito de ampla defesa como garantia fundamental da Constituição da República.
     A defesa é a última a se pronunciar antes do julgamento, e adveio a condenação pela opinião considerada incitação ao preconceito, porque a prova demonstrou a correção pessoal do representado, sua imparcialidade e a admiração dos jurisdicionados.
     Aí está a segunda gravidade, a ênfase do julgamento da opinião ou do excesso de linguagem. Deve-se dizer uma opinião infeliz, desgraçada, incabível numa sentença, uma reles opinião, ainda assim uma opinião.
     O sagrado direito de defesa foi aviltado e o julgamento foi da opinião como preconceito. É isso que a Constituição da República preconiza?
     Poetas dizem que a mulher é obra-prima da criação divina. As mulheres são deusas da beleza e do amor. São opiniões ou sentimentos aplaudidos por muitos, mas não por todos. É a minha opinião, da qual não abro mão, embora não fique falando dela nas minhas sentenças.
     Um exagero? Ainda assim uma opinião, à semelhança da infeliz generalização feita na sentença em relação à mulher.
     Pode o CNJ penalizar quem expressou em sentença opinião sobre a mulher, mesmo que lastimável, fato ocorrido em 2007? Em que medida pode punir, por censura da linguagem ou afastamento da jurisdição? O quanto isso importa para o futuro das opiniões independentes que as sentenças representam? Atinge-se a independência das sentenças que garantem ao povo o seu direito? O juiz estará obrigado a julgar conforme a opinião dominante do CNJ, sob pena de afastamento da jurisdição?
     O acontecimento é grave demais para solução neste pequeno artigo, compreensível na sua essência e finalidade: é um alerta e uma crítica em repúdio à decisão do CNJ ao aviltar o direito de defesa e afastar da jurisdição quem expressou mera opinião, ainda que preconceituosa e censurável, porque o direito de defesa garantido a todos e o de opinião, indispensável às sentenças judiciais, são conquistas da humanidade incorporadas na nossa Constituição da República.

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     Que bonito, ó, senhor deus onipresente e onipotente! Quer dizer que se trata de “mera opinião” asseverar em sentença judicial que “a desgraça humana começou por causa da mulher”, considerar a Lei Maria da Penha absurda e a classificar como um “monstrengo tinhoso” e outros disparates?
     Agora vai a minha opinião: esse senhor deus onipresente e onipotente é mais um “monstrengo tinhoso”!
     E não queira, senhor desembargador, punir-me por essa opinião. O senhor mesmo diz que, apesar de lastimável, exagerada e com excesso de linguagem preconceituosa, uma opinião não pode ser punida. E, veja bem, isto não é uma sentença judicial, mas apenas uma infeliz e desgraçada opinião postada em um obscuro blog.
     O senhor veio de uma mulher, desembargador. Por acaso, tem esposa? Tem filha? O que pensa delas? Qual seria sua opinião se algum juiz fosse penalizado por opiniões contra a lei Afonso Arinos? O que o senhor pensa sobre o Projeto de Lei PLC 122/2006, que aborda as mais variadas manifestações que podem constituir homofobia?


     Desculpe-me, senhor desembargador, mas mantenha suas opiniões na sua roda de amigos, não as publique num jornal dominical.

domingo, 14 de novembro de 2010

Casamento




     Casamento é uma coisa de ações, vontades e sentimentos opostos, que assusta a muitos, ao mesmo tempo em que outros o encalçam desesperadamente. Tem gente que foge dele assim como de um cachorro brabo, especialmente homens, ou por serem muito galinhas ou por não serem muito homens; por outro lado, tem gente que o procura em agências matrimoniais e até na internet.
     Os dicionários brasileiros dizem que casamento é “ato solene de união entre duas pessoas de sexos diferentes, capazes e habilitadas, com legitimação religiosa e/ou civil” ou “união voluntária de um homem e uma mulher, nas condições sancionadas pelo direito, de modo que se estabeleça uma família legítima”.
     Estão ultrapassados esses pais dos burros. Nas próximas edições terão de incluir na principal acepção que casamento é ato solene ou união voluntária entre duas ou mais pessoas, etc. etc. Sem essa de “duas pessoas do mesmo sexo” ou “união de um homem e uma mulher”. Isso já era.
     A sociedade cria diversas expressões para classificar os diversos tipos de relações matrimoniais existentes. As mais comuns são:
casamento civil - celebrado sob os princípios da legislação vigente em determinado Estado (nacional ou subnacional);
casamento religioso - celebrado perante uma autoridade religiosa ;
casamento aberto (ou liberal) - em que é permitido aos cônjuges ter outros parceiros sexuais por consentimento mútuo
casamento branco ou celibatário - sem relações sexuais;
casamento arranjado - celebrado antes do envolvimento afetivo dos contraentes e normalmente combinado por terceiros (pais, irmãos, chefe do clã etc.) ;
casamento de conveniência - que é realizado primariamente por motivos econômicos ou sociais;
casamento misto - entre pessoas de distinta origem (racial, religiosa, étnica etc.);
casamento morganático - entre duas pessoas de estratos sociais diferentes no qual o cônjuge de posição considerada inferior não recebe os direitos normalmente atribuídos por lei (exemplo: entre um membro de uma casa real e uma mulher da baixa nobreza);
casamento nuncupativo - realizado oralmente e sem as formalidades de praxe;
casamento putativo - contraído de boa-fé mas passível de anulação por motivos legais;
casamento poligâmico - realizado entre um homem e várias mulheres (o termo também é usado coloquialmente para qualquer situação de união entre múltiplas pessoas);
casamento poliândrico - realizado entre uma mulher e vários homens, ocorre em certas partes do himalaia;
casamento homossexual ou casamento gay - realizado entre duas pessoas do mesmo sexo.

     Em sentido figurado, casamento é “aliança, união, combinação, harmonia”, “combinação harmoniosa de duas ou mais coisas; união estreita e íntima”, ou seja, praticamente o oposto do que é o casamento em sentido restrito para muitos casais. Metaforicamente podemos dizer, por exemplo, que os pés de Pelé eram casados com a bola. Os de Maradona também, se bem que a bola teve um famoso affair com a mão dele. Essa “pulada de cerca” da mão de Maradona tirou a Inglaterra da Copa de 86. Os pés dos Ronaldinhos também se casaram com a bola. Ultimamente andam um pouco às turras, mas, ainda assim, é um casamento. Os de Neymar, por sua vez, estão em lua de mel com a gorduchinha.
     Deixando os argentinos e o sentido figurado de lado, confesso que não me incluo entre os que fogem (ou fugiram) do casamento como de cachorro doido, mas também não o procurei aflitamente. Eles simplesmente aconteceram na minha vida. Sim: “eles”! Estou no terceiro e, garanto, último.
     O primeiro veio cedo. Eu tinha 23 anos, ela, 19. Não foi por necessidade, pois nem filhos tivemos em quatro anos e meio. Eu tinha um bom emprego, tínhamos onde morar sem pagar aluguel e uma vontade tremenda de ficarmos juntos. Foi bom enquanto durou. Pelo menos é o que eu acho.
     Durante a vigência desse casamento, me senti incentivado a continuar a estudar e comecei a fazer jornalismo. Um ano antes do final do curso já estava separado e, pasme, namorando outra mulher, que conheci uma semana depois de sair de casa. Menos de um ano depois, fui morar com ela, que já estava grávida por ocasião da minha formatura.
     Nossa filha nasceu em junho. Depois de um ano e três meses nasceu nosso filho. Esse casamento durou 27 anos, dos meus 28 aos 55, justamente o auge da minha vida até agora. Nem preciso salientar a importância dessa união que, assumo, terminou por culpa minha.
     Foi então que, sem procurar muito, acabei encontrando na internet minha atual mulher. Faz cinco anos que estamos juntos. Antes de me conhecer, ela teve um relacionamento de 21 anos. Não éramos mais — nem somos — marinheiros de primeira viagem. Pelo contrário, já conhecíamos — e conhecemos bem — os mares por onde devemos navegar.
     Longe de mim classificar a minha idade como sendo de “terceira”. Em países em desenvolvimento, por exemplo, alguém é considerado de terceira idade a partir dos 60 anos. Para a geriatria, somente após alcançar 75 anos a pessoa é considerada de terceira idade. Vamos dizer, então, que estamos na maturidade, que, em sentido figurado, quer dizer “perfeição, excelência, primor, firmeza, precisão, exatidão”. Quando conheci minha mulher tinha 55 anos, mas com corpinho de 54 e meio. Já cheguei aos 61, mas o corpinho continua de “segunda idade”, não sou aposentado e toco bateria em duas bandas de rock. Vou me classificar, portanto, de acordo com a geriatria: só vou ficar velho depois dos 75. E olhe lá!
     O que eu queria dizer é que começar uma relação amorosa nessa fase, a maturidade plena, é bem diferente do que quando se é jovem. As coisas já estão nos seus devidos lugares. A pessoa madura sabe que o amor se constrói dia após dia, tenta corrigir defeitos, contornar dificuldades, evitar atritos e sempre manifestar afeição e carinho. As experiências vividas nos ensinam a sermos serenos, livres, tolerantes, generosos, sábios e a termos discernimento. Nessa fase enxergamos a realidade natural, temos uma visão aberta e realista das coisas que realmente importam na vida. Na maturidade percebemos intuitivamente as coisas do espírito e da alma, que nem sempre os olhos enxergam.
     Um relacionamento iniciado nessa etapa da vida não é como casamentos que duram cerca de 50 anos. Apesar de duradouros, percebe-se nesses uma espécie de ranço de convivência. Um bom exemplo disso é o casal Antero e Brígida, da novela Passione. Que não se ofendam os que já estão ou os que estejam chegando lá: toda regra tem exceção.
     Enfim, não é porque esteja no terceiro casamento que vá condenar aqueles que fogem dele, tampouco os que, mesmo querendo, não o conseguem facilmente e o procuram em agências matrimoniais. O casamento acaba acontecendo na vida das pessoas naturalmente, seja qual for a definição que o termo tiver, seja qual for a classificação dada pela sociedade para a relação matrimonial.
     Afinal, a Bíblia diz que Deus falou a Adão e Eva que era para eles crescerem e se multiplicarem e não para “casarem“ e se multiplicarem.
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Fontes
CIFUENTES, Rafael Llano. A Maturidade. São Paulo: Quadrante, 2003.
Assumpção, Wanda. Maturidade. Disponível em http://www.wandadeassumpcao.com.br/artigos/maturidade.htm
Wikipedia. Casamento. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Casamento

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Fogo na guarita



     Já falei várias vezes neste blog sobre o bairro que moro. Em 85% delas falei mal. Assim foi em Galos de Despacho, O leste e o norte, Pichação, O pequeno infrator, As árvores do Partenon e Tô brabo com o padre. Só falei uma vez de coisa boa, que foi em Furnarius Rufus.
     Cá estou pra aumentar a estatística ruim, falando mal novamente. Neste canto distante 7,5 Km de carro (15 minutos) do marco zero de Porto Alegre, ocorreu, ontem, mais uma barbárie.
     Eram mais ou menos três e meia da tarde. Eu estava deitado, quase dormindo, quando um ruído diferente sobressaiu-se ao do vento que soprava por entre as frestas das persianas, sacudindo-as. Sonolento, fiz uma pergunta retórica a minha mulher:
     — Que barulho é este?
     Sem atentar para o ineditismo do ruído, respondeu-me que seria alguém arrastando alguma coisa na rua. Discordei. Era um ruído forte, de algo que crepitava.
     — Acho que não – disse –, barulho de coisa sendo arrastada passa. Este barulho tá ficando!
     Ela se levantou, foi a janela e me chamou:
     — Vem ver!
     Vi e fotografei.


     Tacaram fogo na guarita do guardinha!
     Ficamos apenas observando. Duas gurias de uns 12 anos estavam por ali, meio assustadas. Transeuntes passavam e ficavam olhando. Logo chegou um brigadiano. Ficou olhando de longe, conversou qualquer coisa com a vizinha do apartamento abaixo do meu e fez uma ligação do celular. Imagino que tenha sido para os bombeiros.
As meninas disseram pro “seu guarda” que “tinha uns cinco guri ali dentro”, referindo-se à guarita, e que “saíram tudo correndo e começou a pegá fogo”.
     A guarita, de madeira, fazia um belo fogo. O barulho crepitante era das folhas da árvore sob a qual ela estava. Pobre árvore. Mais uma bela árvore do Partenon sofria pela má ação dos homens (no caso, guris, segundo as gurias).
     Os bombeiros chegaram em seguida, quando o fogo já estava baixo. Jogaram água sobre o que restou da guarita e na árvore, que ficou pela metade.
     À noite, chegou seu Eduardo, o guardinha. Desolado, me cobrou a mensalidade e comentou ironicamente que aquilo era obra de quem muito o amava. Disse que, apesar do infortúnio, permaneceria no posto, mesmo com a fina chuva que caía.
     Não sei se ficou. Levantei de madrugada, espiei pela janela e não o vi.

     Quando vim morar neste fim de mundo pertinho do começo da cidade, o guarda era seu João e a guarita era outra, meio descaída. Além de guarda noturno, seu João fazia uns trocos a mais molhando jardins à tarde. Era um tipo bonachão, gordo, desdentado e risonho. Trabalhava para uma “empresa” de segurança. Tinha um chefe que passava no fim do mês pra recolher a “féria”.
     Certo dia, um caminhão de porte médio perdeu os freios na descida da rua, subiu na calçada, pegou de raspão na guarita descaída e parou na parede da casa em frente. A guarita ficou ainda mais desbeiçada. Teve que ser substituída por outra, que seu João pintou com todo carinho, como se fosse sua própria casa.
     A tal “empresa” de segurança acabou desistindo do negócio, tendo em vista que muitas pessoas da redondeza também desistiram de pagar pelos serviços que prestava. Espertos. Se dois ou três pagavam o guarda, certamente este cuidaria de todas as casas da vizinhança, né?!
     Seu João, no entanto, continuou a zelar pelo patrimônio da vizinhança por conta própria. Envolveu-se emocional e, acredito, sexualmente com uma viúva que morava um pouco mais abaixo. Passava os dias com ela e, à noite, vinha para seu posto. Um belo dia, contudo, a viúva resolveu ir para o interior e levou junto seu João. No seu lugar ele deixou o Eduardo, um amigo que ficava de guarda nas suas folgas.
     Não sei se foi a ausência do seu João ou se o Eduardo não tinha o mesmo carisma. Um dia, a guarita apareceu pichada, e assim permaneceu até ontem, quando foi queimada.
     Não sei o que vai ser, agora, da “segurança” do pedaço. Imagino que o Eduardo vá querer fazer uma vaquinha entre os que o pagavam até ontem, pra erigir nova guarita. Eu fora. Acho que não precisamos de segurança. Apesar da aparência assustadora das noites por aqui, o canto fica há duas quadras de uma das mais conhecidas e famosas bocas de fumo de Porto Alegre. Se depender do Paulão, chefe do tráfico da Vila Maria da Conceição e que, atualmente, cumpre pena, no seu território não tem espaço pra bandidagem.

sábado, 6 de novembro de 2010

Aurélio



     Aurélio não era bem um dicionário, mas quase. Sabia um monte de coisas: previsão do tempo, cotação do dólar, as capitais de todos os estados brasileiros e de inúmeros países, a escalação atual e de todos os plantéis que foram campeões pelo Grêmio, que existe a palavra presidenta e, entre um sem fim de coisas, com quantos paus se faz uma canoa.
     Tinha duas coisas que Aurélio não sabia: relacionar-se bem com outras pessoas e usar computadores.
     Aurélio foi abandonado pela mãe biológica ainda bebê. Acharam-no num terreno baldio, numa cidade do interior gaúcho em que a maioria dos habitantes era de origem germânica. Junto dele estava sua certidão de nascimento sem nome do pai. O nome da mãe, por sua vez, estava riscado, assim como o número do registro e em que livro fora feito. Só se sabia que se chamava Aurélio.
     Um casal estéril, com idade acima do limite para ter filhos biológicos, recolheu-o no abrigo para menores, adotou-o, refez o registro e, em respeito, manteve o primeiro nome. Aurélio Becker passou a se chamar aquele bebê pardo de poucos meses.
     Os pais adotivos de Aurélio, de classe média, lhe deram todo o conforto. O menino usava boas roupas e estudou na melhor escola privada da cidade, desde o ensino fundamental até o médio (naquela época era outra classificação). Não sei se devido à origem germânica, no entanto, o casal não lhe proporcionava muito afeto. Em razão disso, o rapaz era solitário. Arredio, não tinha amigos na escola e até sofria um pouco de bullying.
     Quando terminou o ensino médio, Aurélio manifestou o desejo de transferir-se para a capital, onde faria vestibular, sem saber ainda para o quê. Os pais abriram-lhe uma conta no banco e providenciaram um pequeno apartamento, modestamente mobiliado, no Bom Fim. Trazendo na mala poucas roupas, alguns livros, um rádio portátil e a máquina de escrever com que fazia seus trabalhos escolares, desembarcou na rodoviária de Porto Alegre em 1982. Tinha, então, 17 anos, prestes a completar 18.
     Depois de instalar-se, deu uma volta pelo bairro. Na revistaria comprou um mapa da cidade e um jornal de concursos. Leu que em poucos meses haveria um concurso para agente administrativo na Inspetoria da Receita Federal de Porto Alegre. A exigência era segundo grau completo.
     Aurélio desistiu de fazer vestibular sabe se lá para o que e, desde os 18 anos, é funcionário público federal: agente administrativo. Seus pais adotivos, já falecidos, não se alegraram nem contestaram sua opção profissional. Nesses últimos 27 anos sua vida não tinha sido, até então, muito diferente do que era nos tempos do colégio, quando morava no interior. Não se casou, continuava sem amigos, era tratado com desconfiança e, por sua taciturnidade, motivo de chacota por parte dos colegas. De sua intimidade só se sabia o nome: Aurélio Becker.
     Trabalhava sozinho numa pequena sala que nem vista para a rua tinha. Além dos tradicionais bons dias, boas tardes e até logos, só falava com os colegas para responder-lhes como seria o tempo no fim de semana, qual era o número do telefone da Delegacia da Receita Federal em Roraima, como se chamava o responsável pelos suprimentos, de Brasília, quanto valia o dólar no dia, etc. Vivia grudado no rádio de pilha e sua diversão era ir aos jogos do seu glorioso tricolor, o Grêmio.
     Quando a repartição se informatizou, Aurélio negou-se peremptoriamente a aceitar um computador. Disse que preferia continuar fazendo o que fosse necessário na grande Remington que tinha na mesinha auxiliar, e a qual tratava com tanto cuidado que, ainda hoje, parecia nova, como um objeto de decoração. Quando havia necessidade de distribuir eletronicamente algum memorando ou comunicado, datilografava o texto na Remington e ordenava que um dos estagiários “passasse a limpo” no computador.
     Mas eis que um dia não deu mais pra fazer esse esquema. Uma ordem superior determinou, também peremptoriamente, que Aurélio não poderia mais usar a Remington na execução das tarefas e sim um computador. E foi instalada na sua sala uma máquina com processador Intel Core i7 930 2.8GHz, 4GB de memória, HD 1TB, DVD-RW, Placa de vídeo ATI Radeon HD5770 1GB DDR5... Coisas que Aurélio não tinha a menor ideia do que seriam, mas que constavam da nota que teve que assinar.
     Pediu que um dos estagiários lhe ensinasse a usar tudo aquilo, e foi atendido. O estagiário, prevendo que algum desastre poderia acontecer, instalou no computador um moderno antivírus. Como o programa se atualizaria sozinho cada vez que o computador fosse ligado, achou que nem precisava avisar Aurélio. Mostrou a ele os passos básicos para manuseio da máquina e uso do processador de textos, prometendo avançar aos poucos nos ensinamentos.
     Nos dias que se sucederam, Aurélio já estava frente ao computador quando o estagiário chegava. Um tropeço aqui, outro ali, mas o compenetrado estudante ia aprendendo a lidar com a máquina. Depois de uma semana, Aurélio perguntou ao estagiário quem era o fabricante daquilo que chamavam de antivírus. O rapaz informou o nome, mas nem se importou em saber por que o chefe queria saber. No dia seguinte, perguntou como poderia entrar em contato com o tal fabricante. O estagiário disse que Aurélio deveria entrar no programa que no item Ajuda, na opção Sobre, encontraria um telefone, um email ou, ainda, o endereço de um site.
     Certo dia em que Aurélio estava fora da sala, o estagiário entrou. O programa de email estava aberto e na tela estava escrito o seguinte:


Prezados Senhores

Meu nome é Aurélio Becker, sou servidor da Receita Federal e, em primeiro lugar, venho, por este meio, cumprimentá-los pelo excelente programa antivírus fabricado por Vossas Senhorias.
Em segundo lugar, devo deixar registrado um problema de saúde que estou manifestando, justamente devido a vosso programa. O problema a que me refiro é a insônia. Tenho passado as noites e madrugadas praticamente acordado, pensando. Em meus devaneios, viajo até a sede de vossa companhia, que nem sei onde fica, e vasculho todas as salas em busca de uma mulher. Eu não a conheço, apenas imagino como seja sua aparência. Por isso, procuro-a em algum ambiente que, na minha ideia, concebo como sendo uma sala não muito grande, acarpetada, com uma mesa sobre a qual há um microfone. Assim passo as noites, procurando-a, sem encontrá-la. Nunca passei por isso, insônia, com tanta intensidade, assim como também nunca experimentei apaixonar-me.
Finalmente, para tentar acabar com minha angústia, gostaria que os senhores me informassem o nome e uma forma de contato com a mulher cuja voz macia e determinada me diz todas as manhãs, quando ligo o computador:

— As definições de vírus foram atualizadas.