Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ié-Ié-Ai!



     Mais uma postagem da série “textos antigos encontrados numa gaveta”. Já que falei de novo nos Old Stones, abaixo, aproveito a oportunidade pra mostrar este texto, que fala daquela época.

     A Rua da Praia, desde a sua criação, sempre teve fases definidas de acordo com a moda e os modos de seus frequentadores. Comecei a frequentá-la a partir de 1967. Era a época da Beatlemania, também conhecida como do IÉ-IÉ-IÉ, e seus cabeludos, entre os quais eu me incluía. Que barra ser cabeludo quando poucos o eram. “Vai cortá'sê cabelo, veado” era a expressão mais ouvida. Daí para o palavrão e o soco não custava nada. Cabeludo, para os que se julgavam “normais”, era sinônimo ou de bicha ou de maconheiro (qualidades, aliás, também muito criticadas na época).
     Como todo cabeludo que se prezava, eu tocava em um conjunto. Era o baterista, naqueles anos, do “The Old Stones”. Curtição total. Festa-e-festa todos os fins-de-semana.
     Qual o porto-alegrense com cerca de 60 anos não se lembra do Aimoré – ali na Ponte de Pedra – ou do Dinamite, ou da Sociedade Espanhola, ou das reuniões na LABRE, ou da Casa de Portugal, do Caminho do Meio, do Independente e de tantos outros clubes e salões? Lembram como era a maioria das reuniões dançantes, quando um conjunto tocava uma ou duas horas até a chegada de outro, depois outro, até a manhã do dia seguinte? E dos programas do Daltro Cavalheiro, nos sábados à tarde, na TV Piratini, canal 5? E das bandas “The Cleans”, “The Coyners” (que virou Impacto), “Liverpool” (com Foguete Luz, Mimi, Marcão, Pecos e Edinho), “The Dazles”, “Som 4” e de tantas outras bandas não menos importantes que pintaram nos anos sessenta e poucos?
     Essas, no entanto, são outras histórias. As que quero contar dizem respeito a cenas que vivi na Rua da Praia e no centro de Porto Alegre, naquela época. Eu morava em Higienópolis, mas um dos caras que tocava comigo morava na Rua da Praia. À tarde, éramos assíduos frequentadores de alguns pontos-chave da Rua da Praia: em frente à Sloper ou em frente à galeria Malcon ou em frente às lojas Ultralar e outros. Era por ali que nos reuníamos com outros “canalhas”, vespertinamente.
     Não sei o que pensam ou o que conversam os que ali se reúnem hoje. Nós pensávamos e falávamos de músicas, das reuniões dançantes em que tocávamos, das gatas com quem transávamos e dos porres que tomávamos. Também paquerávamos habituais transeuntes e, não raro, “a gente dava em cima e ganhava umas-que-outras”. Era legal.
     Outro ponto que eu e meu colega de banda costumávamos frequentar era o da esquina da Marechal Floriano com a Duque de Caxias, na frente do Colégio Sevigné, onde estudavam as duas irmãs dele e suas coleguinhas interessantes.
     Às vezes, pra nos sentirmos (talvez) mais machos ou mais malandros ou mais modernos ou mais sei-lá-o-quê, bebíamos cachaça. Se não com Coca-Cola, pura mesmo. Num daqueles dias, eu e meu amigo (a partir de agora vou passar a chamá-lo de X para preservar sua reputação) fomos para a frente do Sevigné com uma garrafa de Três Fazendas comprada no Bar Leão. Era verão. Bebíamos direto da garrafa, em doloridos goles no início e suaves logo depois. A gente costumava ficar cantando músicas dos Beatles e do Renato e Seus Blue Caps.
     De repente, passa um padre daqueles de batina e chapéu preto, em direção à Catedral Metropolitana. Ah! Não tive dúvidas: lasquei um “fala, urubu” pra ninguém botar defeito. O padre parou, virou-se lentamente pra nós e perguntou-me se tinha falado com ele. X não sabia se ria ou se corria. As duas coisas ele já não podia fazer ao mesmo tempo. Quando parei de rir, percebi que não era um, mas sim dois padres, iguais, gêmeos, com a mesma expressão, com o mesmo cheiro de sacristia. Respondi que “sim, falei contigo, seu padreco filho-da-...”, e continuei rindo.
     Vi, então, o brigadiano que cuidava do trânsito em frente ao Sevigné caminhando em nossa direção. Pisquei os olhos e já não era mais um, mas dois brigadianos, iguais, gêmeos, com o mesmo passo, a mesma gana de cassetear de cabeludos, o mesmo cassetete. Aí, vi que os dois brigadianos falavam com os dois padres... Opa! Eram três de cada espécie agora!
     Imaginei que seríamos presos, que cortariam nossos cabelos e que, depois, chamariam nossos pais. E a explicação?
     Que nada. Como bom cristão, o padre parece ter entendido e, depois de conversar qualquer coisa com o Pedro e Paulo (assim eram conhecidos os PMs naquele tempo), foi-se embora. O brigadiano, por sua vez, aproximou-se e, para espanto nosso, apenas aconselhou-nos a sair dali porque já estávamos nos tornando inconvenientes. E, com todo o respeito — sim, senhor —, saímos, ainda que cambaleando, pra voltar noutro dia qualquer, com outra garrafa de Três Fazendas.
     E não é que voltamos mesmo! Dessa vez comemorávamos(?) a fossa de X, que tinha brigado com a gata que curtia, ou coisa parecida. Não houve, no local, maiores incidentes. Naquele dia tinham ido junto dois amigos comuns. Não lembro se já tínhamos terminado com a garrafa, ou melhor, com o que tinha dentro dela, quando X alegou uma dor-de-barriga. Precisava ir rápido pra casa.
     Bem que tentamos caminhar ligeiro. Foi difícil, no entanto, descer a Marechal Floriano até a Rua da Praia e seguir por ela até o edifício em que morava. Eram umas cinco da tarde. Às vezes, nós quatro tentávamos passar por dentro das pessoas, como se fossem fantasmas. Noutras ocasiões, queríamos passar no meio daqueles pares de gêmeos que caminhavam em sentido contrário.
     Enfim, chegamos. No térreo daquele edifício tinha (não sei se ainda existe) um sanitário. X decidiu que não daria tempo pra subir até o nono andar. Foi taxativo (com “x” mesmo): “vou neste aqui!” O sanitário tinha uma porta que dava para o corredor do edifício. Abrindo-a, via-se uma pia e outra porta, atrás da qual estava o vaso. Não tranca, recomendamos. Mas não adiantou, o cara entrou e trancou-se.
     Apesar de relógio de bêbado não ter ponteiros, o nosso tinha. Só o dele que não. O tempo foi passando. Impacientes, começamos a chamar o desaventurado. E nada de resposta. “Bodeou” pensamos. Um de nós, então, pulou sobre a parede interna do sanitário – que acima era aberta para ventilação – e de lá disse que X tinha apagado. “Aqui não tem nem papel e o cara cagou um monte” – completou.
     E agora, o que fazer? O terceiro companheiro não teve dúvidas: comprou uma Folha da Tarde (extinto jornal vespertino de circulação diária). A porta foi aberta por dentro e, enquanto eu e o terceiro segurávamos X pelos braços, o quarto, sem muita cerimônia, passava-lhe as páginas policiais da Folha da Tarde naquele local sem dono. Pobre do X, a cada passada do papel jornal murmurava entre dentes: “ai”, sem nem abrir os olhos.
     Pra disfarçar o meu constrangimento, eu ficava cantando mentalmente She loves you, dos Beatles. Sempre que chegava na estrofe She loves you, Ié, Ié... “Ai!” gemia X.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

The Old Stones rides again!



"Depois de algum tempo você aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias, e o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida." (William Shakespeare)


     Em 24 de outubro de 2009 postei neste blog o texto The Old Stones. Confira aqui.
     Se não estiver interessado ou não tiver tempo agora, reproduzo o final daquele texto.


     The Old Stones cresceu e ficou conhecido em Porto Alegre e algumas cidades do interior. Durou alguns anos e, depois, cada um seguiu seu rumo, tocando em outros “conjuntos“.
     Em 1996, para comemorar os 30 anos de que havíamos tocado pela primeira vez, o Buffalo promoveu um jantar dançante e os Old Stones se reuniram de novo.

     Pois bem, na noite passada, os Old Stones reuniram-se novamente. Não pra tocar, mas pra celebrar a velha amizade de 44 anos. Na verdade, 244 anos estavam ao redor de uma mesa. Se somarmos a idade do proprietário do bar, que também foi parte daquele círculo, teremos, então, 302 anos.
     Calma. Somos do século passado, mas o atual só tem nove anos, portanto... Explico melhor. Quando nos conhecemos, eu e o Júlio tínhamos 16 anos, o Buffalo, 17, o Português, 15 e o Tonho, proprietário do bar, 14. Hoje estamos, respectivamente, com 61, 62, 60 e 58.
     A história dos Old Stones você já leu (se ainda não leu, faça o favor). Nela, contudo, não falei do Tonho. O João Antônio era um guri que morava na minha rua, onde ensaiávamos. Como também curtia música, estava sempre junto e era um dos que carregavam instrumentos e amplificadores quando íamos tocar (hoje em dia é uma profissão e chama-se roadie). Uma vez a banda ia viajar para o interior e o Português não poderia ir. De tão entrosado que era com o grupo, nem pestanejamos em convidar o Tonho pra substituir o Portuga na excursão. Mas ele era tão guri que a mãe dele não deixou. O Português acabou indo.
     Os Old Stones terminaram. Eu e o Buffalo seguimos tocando em outras bandas. Primeiro juntos, nos Hooligans, depois para lados diferentes: ele para os Invencíveis; eu para a Banda do Pentágono da Paz e, finalmente para o Caos. O Português ainda tocou numa banda chamada Nômades, na qual acabou substituído pelo Tonho. O Júlio, por sua vez, não tocou mais, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, casou-se, foi morar em Tubarão — onde mora até hoje — e tornou-se um profissional da área financeira, aposentando-se pela extinta RFFSA. O Buffalo trabalhou e se aposentou pela Caixa Federal. O Português é engenheiro, tem uma empresa de engenharia e ainda trabalha. Eu trabalhei alguns anos com publicidade, formei-me em jornalismo e, desde 1979, trabalho na UFRGS. Não me aposentei. O Tonho seguiu carreira no meio artístico, trabalhando em rádio, tocando em grupos famosos como a Banda dos Corações Solitários, que é banda do pub Sgt Peppers — do qual era sócio —, e no grupo musical humorístico Discocuecas. Ficou conhecido como garoto propaganda das lojas Tevah e suas jaquetas reversíveis e, atualmente, ainda aparece em comercial da Jimo. Tonho é proprietário do John's Pub, local em que os Old Stones se reuniram ontem.
     Voltando ao encontro de ontem. Foi uma oportunidade de matar a saudade de um tempo que, se voltasse, com certeza nós cinco faríamos tudo exatamente como fizemos. Se não fosse assim, não teríamos sobre o que falar nem o que comemorar 40 anos depois.
     A memória é uma coisa estranha. Algumas passagens eram lembradas por todos, em uníssono. Chamou-me a atenção, no entanto, o fato de cada um lembrar-se de acontecimentos que, apesar de vividos por todos, permaneciam apenas na memória de um ou de alguns, respectiva e vice-versamente (putz, essa foi braba!). Outras coisas se perderam no tempo e se embaralharam de tal modo que alguns lembravam de um pedaço, outros, de outro. No somatório, contudo, acabamos enriquecendo nosso repertório de lembranças.
     Quero ver repeti-las no próximo encontro.
     Muito eu teria para contar sobre a trajetória desses guris cabeludos que, na década de 60, se juntaram com o objetivo de fazer sucesso com a música e “ganhar” todas as gurias que pudessem. É coisa pra livro, mas que, com certeza, só interessaria aos The Old Stones.

Júlio, Buffalo, Portugês e eu, na década de 60


Em sentido horário: Júlio, Buffalo, eu, Português. Agachado: Tonho.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A matança do porco


     Fim de ano, invariavelmente, a gente remexe em armários e gavetas, em busca de coisas antigas que se guardou pra nunca usar. E quanta coisa se guarda sabendo que não vai usar. Quanto papel!
     Fiz isso e encontrei textos que escrevi em meados da década de 70. Estavam numa velha pasta de um congresso que nunca fui. Dei uma lida, uma revisada e, não contente em tê-los guardado por tantos anos em papel, vou deixá-los aqui, a partir de hoje, para guardá-los também neste meio virtual. Pelo menos não ocupam espaço na gaveta...
     Começo com este texto que fiz depois de ouvir música homônima de um grupo mineiro chamado “Som Imaginário”. A música é “A matança do porco”. Ouça-a.



























     Se você se interessa pelo assunto, clique aqui. Caso contrário, passe de imediato à leitura do texto.


A matança do porco


     Vi quando eles saíram da velha casa de madeira plantada na coxilha verde e de raízes entrelaçadas às da figueira que lhe faz sombra. Desceram os trêmulos degraus que gemiam ao peso do ar morno. O mais gordo, que poderia ser o patrão, ficou no vestíbulo. Olhava para o nada a procura de tudo. Procurava um modo de medir tudo sem fazer nada. Atirou o chapéu desbeiçado acima da testa e largou sua gordura num caibro carunchado que ainda sustentava a varanda de telhas desbotadas.
     Os outros, sem demonstrar alguma vontade, caminhavam para cá, trazendo o mormaço nos olhos, covas profundas que davam a impressão de estarem cheias de vermes. Suas roupas, rotas, poucas, não tinham cor. Eram amontoados de remendos que pareciam viver há mais tempo do que quem as vestia. Todos ainda usavam as botinas que ganharam no quartel, há muito tempo, quando, nas horas vagas, o velho patrão era coronel. Nada faltava aos seus naquela época. Agora, já estava morto e esquecido, mas as botinas ainda serviam àqueles pés fiéis.
     Chegaram ao portão do curral e soltaram os seus sovacos nos tocos horizontais que o formavam. Dentro, uns cavalos magros apoiavam-se uns nos outros e duas vacas velhas arrancavam os últimos tufos de pasto que restavam.
     Viraram-se automaticamente sem tirar o corpo do portão e fixaram silenciosamente a longínqua serra. Por um momento, pareceu-me que eles pensavam. E com certeza era nas mulheres da cidade. Há quanto tempo não visitavam aqueles quartos perfumados onde havia uma mistura de loções masculinas. Cada cheiro era de um homem diferente que ali entrava. E isso era de meia em meia hora, o dia todo, a vida toda. E cada homem tocava em outro e saía com o cheiro de todos. Todos iguais, como as mulheres que lhes cheiravam.
     Dois urubus que passaram voando baixo fizeram com que despertassem e caminhassem um pouco. Vieram na minha direção e um súbito vento trouxe o cheiro que talvez tivesse atraído os pássaros carniceiros. O odor saía deles como os vapores saem do chão nos dias quentes. As galinhas que ciscavam por ali correram cacarejando, assustadas.
     Perto havia pequenas árvores, crianças ainda. Pegaram nos seus facões e começaram a cortá-las como se estivessem em mais uma batalha, numa guerra contra os indefesos galhos verdes. Seus ramos, débeis e perfeitos, saltavam para os lados sangrando. Se tivessem voz chorariam. Cada um cortou uma. Restaram outras de sorte duvidosa, futuro incerto. Rasparam os troncos até ficarem lisos. Agarravam e apertavam nas mãos aquelas novas armas. Para mim eram armas. Para eles talvez fossem lápis. Lápis que os ignorantes usam para escrever com o sangue dos outros a afirmação de seu machismo. Giravam-nas e davam golpes no ar quente. Nos poucos dentes que tinham, via-se um sorriso de ódio. As coroas de ouro brilhavam ao sol que fugia para oeste.
     Meteram-se numa brincadeira de imbecis. Batiam os cacetetes uns nos outros e gritavam como demônios, correndo em roda. Às vezes um caía ao chão o os outros se punham a rir e a jogar-lhe terra com os pés. Assim ficaram por algum tempo até repararem na minha amedrontada presença.
     Falaram qualquer coisa. Combinaram algo sinistro, como pude ver pelo brilho dos seus olhos. Não sei se por isso ou por que, afastei-me devagar. Olhei para trás e vi que me seguiam. Apressei o passo das minhas pequenas pernas. Eu estava gordo e não podia correr muito. Cercaram-me. Cada um de um lado e sempre chegando perto. Bradavam as armas e soltavam grunhidos que se perdiam pelos campos virgens. Não sabia pra qual lado ir. Virei para trás e o sol caído ardeu-me nos olhos. Tinha que haver um modo de fugir. Estava com medo.
     Quantas vezes maldisse aquela terra crua, aquele ambiente sem chances para mim. Naquele lugar só se comia para sobreviver. Eu queria mais, um pouco mais. Um lugar seguro onde dormir. Uma comida melhor, não só restos. Uma fêmea. Talvez com uma companheira eu até ficasse por ali. Eu viveria em qualquer pocilga. Quando cheguei, nos tempos do coronel, havia muita esperança. Ainda era pequeno. Nunca mais soube de meus pais. O lugar era mais decente, a comida era melhor. Tinha um canto só para mim. Era bom.
     Em relâmpagos voltava o meu passado. Não havia muita coisa para recordar. Foi tudo uma sucessão de esperanças. Algum dia haveria de ser melhor que o anterior.
     E os porcos com seus porretes acercavam-se, acuavam-me. Comecei a berrar não sei por quê. Talvez para ganhar forças ou para atrair a atenção de alguém. Mas quem me ouviria naquele fim de mundo deste mundo sem fim? Eu berrava e corria em círculos. Parei um pouco e vi, em cima da cerca, os urubus que passaram antes. Tinham um olhar estranho aquelas bestas fétidas. E que pressentimento: sabiam que sobraria algo para eles ou foi o cheiro dos porcos de porrete que os atraiu?
     Senti nas costas uma pontada quente. E outra. Rolei para o lado grunhindo. Um deles escorregou e caiu ao meu lado. Era uma chance. Pisoteei-o e escapei pelo buraco que se formou na barreira. Não fiquei só por muito tempo. Em seguida comecei a sentir novamente as pancadas. Os seus berros agulhavam-me os ouvidos. As pancadas ardiam-me na carne e nos ossos. Fiquei tonto, mas não parei de correr e berrar.
     Bem que eu poderia parar e esperar calmamente a presença da morte. Em pouco tempo, então, eu seria apresentado a ela e não haveria mais pauladas, agulhadas, dores e odores. Mas restava a esperança. Eu, que vivi até aquele momento com ela, não poderia abandoná-la. Continuaram as pauladas. Meus grunhidos diminuíram, os deles aumentaram. A força começou a me fazer falta e a dor era insuportável. Tombei.
     Ao longe ouvia as risadas desdentadas. Abri os olhos com esforço e o que vi fez-me fechá-los de novo. Um deles largara o porrete o desembainhava a sua faca suja. Recomecei a berrar quando senti várias mãos grandes tocarem o meu corpo moribundo. Foi o mesmo que nada. A esperança, a velha companheira, foi-se embora. Num último grunhido senti meu corpo cansado ser perfurado abaixo da pata dianteira esquerda por uma lâmina com gosto de terra e cheiro de carne seca. Agora eu poderia conhecer a morte. Sem mais dor, sem mau cheiro, sem restos e sem frustrações. Agora eu teria um lugar só para mim.
     Mas qual não é minha decepção, meu corpo pendurado no gancho frio do açougue. Qual não é minha frustração estar ao lado de bois, vacas e galinhas que se renovam diariamente. E eu sempre aqui, esperando, sentindo o mau cheiro destas carnes velhas e gordas. Pelo pouco que devo ter rendido — talvez meia hora com uma das mulheres do bordel —, bem que poderia ter sido deixado aos urubus. Enfim, dói-me mais do que as pauladas saber que espírito de porco não tem lugar algum em outro mundo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Cartões de Natal



     Houve um tempo, do qual ainda lembro, que as pessoas costumavam trocar cartões de Natal. Meu pai, sujeito muito organizado, mantinha uma lista de parentes e famílias de amigos à qual recorria nessa época, todos os anos. Para cada um, além do texto que vinha impresso nos cartões, mandava uma mensagem personalizada de poucas palavras. Ele escrevia alguns; minha mãe, outros. Lembro-me até da letra de cada um: a do meu pai, elegante e legível, com jeito de quem se debruçava sobre os cadernos de caligrafia; a da minha mãe, também legível, mas bem simples, de alguém que se alfabetizou lá por 1917, em Caxias do Sul.
     Havia um fato que me chamava a atenção: só mandavam cartões a quem, no ano anterior, os tinha retribuído. Aquela lista de parentes e amigos tinha uma marca ao lado do nome de quem não respondia com iguais votos de Feliz Natal e Próspero Ano Novo. A cada ano, essa relação de nomes ficava menor. Havia duas implicações nesse ato: uma moral, de “não lembrar” de quem não se lembrava de nós; outra financeira, pois era menos despesa com cartões e remessa pelos correios.
     Mais tarde, quando eu já tinha meus filhos, procurei manter esse costume. Não tinha uma lista de nomes, mas mandava cartões a parentes e a amigos mais íntimos. Mantinha, também, o hábito de só mandar a quem respondera aos votos do ano anterior. Essa troca de cartões, contudo, não durou muito. Eram tão poucas as respostas que acabei deixando esse costume de lado.
     Com o advento da informática, mas antes da internet, passei a confeccionar e a imprimir os poucos cartões que enviava. Apelava pra criatividade e montava belas (e modestas) mensagens com fotos da família e textos personalíssimos, que não seriam lidos em nenhum cartão comprado.
     Foi então que a internet se popularizou. As pessoas e os carteiros passaram a ter menos trabalho. As pessoas porque não precisam mais ir a uma livraria comprar os cartões, escrever nome e endereço do destinatário, etc.; os carteiros porque não têm mais aquele volume grande de correspondências para entregar nos finais de ano.
     Agora, os que ainda mantêm a tradição de trocar cartões de fim de ano recorrem à internet em busca de imagens bregas de papais noéis, renas, guirlandas, pacotes de presentes ou, então, de apresentações em Power Point (os famigerados arquivos “pps”) com textos igualmente bregas e quilométricos, com imagens que levam horas pra trocar e com aquelas musiquinhas de Natal muito chatas de fundo, que levam um tempão pra carregar no computador da gente. Encontrado o objeto, o trabalho que têm é encaminhá-lo à lista de contatos eletrônicos, todos de uma vez. Pronto, cumprida a “obrigação”.
     Confesso que faço quase o mesmo. Repito os passos das duas últimas frases do parágrafo anterior: mando a mensagem a minha lista de contatos e me sinto com o dever cumprido. Passo longe, no entanto, da primeira fase, de procurar desenhos e mensagens bregas. Faço as minhas próprias mensagens cafonas.
     Neste ano, antes de mandar minha mensagem, havia recebido apenas uma, de um velho amigo, que também se valeu de sua criatividade escreveu um belo texto e acrescentou o link para um vídeo do Youtube. Depois que mandei a minha, recebi alguns agradecimentos e retribuições, muitas em forma de arquivos “pps” sem criatividade alguma.
     Só de raiva, fiz em Power Point a mensagem deste ano. Não tive coragem, entretanto, de fazer como aquelas apresentações demoradas. É apenas uma página com um texto e uma foto que compartilho com vocês (claro que não em “pps”, mas adaptada ao formato desta página). Quero ver se alguém vai responder.

Fantasia

     Nos imaginamos como um casal bonito e famoso. Tipo assim: Richard Burton e Elizabeth Taylor; Tom Cruise e Katie Holmes; Michael Douglas e Catherine Zeta-Jones, enfim, qualquer um dos tantos. Escolhemos ser Brad Pitt e Angelina Jolie. Graças ao Photoshop, isso foi possível, mesmo que virtualmente, visível no monitor do computador, no porta retrato digital, num álbum de fotos reproduzido na TV ou até impresso.


Isso é uma coisa puramente ideal ou ficcional, sem ligação com a realidade. É o que chamamos de fantasia
     Que bom se fantasia e realidade trocassem de lugar. Isto, claro, é mais uma fantasia. Pra citar um exemplo mais atual, imagine traficantes entrando em delegacias e se entregando pacificamente; imagine a polícia invadindo casas humildes para entregar cestas básicas; imagine uma cesta básica com filé mignon, picanha, foie gras; imagine todas as ruas de Porto Alegre asfaltadas e sem congestionamentos; imagine ar puro, sacolas de papel, garrafas de vidro... Imagine o contrário de tudo que você acha ruim. Fantasie. Seja criativo. Não se deixe levar pela realidade, mas, com os pés no chão. Enfrente o futuro.
     Esteja pronto pra 2011.

Clara e Aldo