Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quinta-feira, 19 de maio de 2011

Por uma vida melhor

     Por uma vida melhor é o título do livro que integra a coleção Viver, Aprender, destinada aos alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), distribuído pelo MEC a 485 mil alunos de 4,2 mil escolas, através do Programa Nacional do Livro Didático.
     Essa obra tem dado o que falar com a polêmica levantada pela imprensa escrita, falada, televisionada e “blogueada”. Cronistas, articulistas e editorialistas — muitos dos quais, tenho certeza, nem leram o livro didático —, todos fantasiados de donos da verdade e da língua portuguesa, insurgiram-se contra a obra porque, segundo eles, admite erros de português, coisa que acham que não cometem e não aceitam que se cometa. Alguns dizem que o livro ensina a falar errado; outros falam como se fosse para crianças (desconhecem, inclusive, que se destina ao EJA). Um grande jornal do Rio de Janeiro disse, em seu editorial, que Este atentado à educação pública brasileira, considerada por unanimidade o maior empecilho a que o país atinja um estágio superior de desenvolvimento e se mantenha nele, se assenta numa visão ideológica da sociedade alimentada pela ‘mitologia do excluído’, ligada à ‘síndrome da tutela estatal’. Qual unanimidade, caras pálidas? Aquela burra, do Nelson Rodrigues? Eu fora! Neste caso, já não é mais unanimidade.
     O primeiro capítulo do livro em questão, “Escrever é diferente de falar”, procura explicar aos alunos jovens e adultos (aqueles que não completaram os anos da educação básica em idade apropriada) que não há um só jeito de escrever e de falar, e que a língua portuguesa apresenta muitas variantes. Diz que uma delas é de origem social: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular”.
     Numa das seções desse capítulo, os autores explicam o funcionamento da concordância entre as palavras:

A concordância entre as palavras é uma importante característica da linguagem escrita e oral. Ela é um dos princípios que ajudam na elaboração de orações com significado, porque mostra a relação existente entre as palavras.

Verifique como isso funciona:

Alguns insetos provocam doenças, às vezes, fatais à população ribeirinha.

insetos (masculino, plural) ◄ alguns (masculino, plural)
doenças (feminino, plural) ◄ fatais (feminino, plural)
população (feminino, singular) ◄ ribeirinha (feminino, singular)

As palavras centrais (insetos, doenças, população) são acompanhadas por outras que esclarecem algo sobre elas. As palavras acompanhantes são escritas no mesmo gênero (masculino/feminino) e no mesmo número (singular/plural) que as palavras centrais.

Essa relação ocorre na norma culta. Muitas vezes, na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente.

     Nesse sentido, seu conteúdo traz por escrito alguns exemplos de “falas” de pessoas de classes menos favorecidas, que tiveram pouco ou nenhum contato com a chamada norma culta da língua portuguesa. Entre outras, usam essas três frases para explicar as variedades: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”; “Nós pega o peixe”; e “Os menino pega o peixe”. O que os cronistas e articulistas fizeram foi pinçar essas frases de seu contexto original e manipulá-las, como, aliás, soem fazer com tudo. Foi o que bastou para que a obra fosse considerada assustadora, absurda e outros adjetivos menos elogiosos. Nenhum deles, no entanto, falou sobre o contexto em que as frases foram apresentadas. Veja isso:

Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado

Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:

O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:

Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.

Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro?’.”

Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.

Os autores também explicam que na variedade popular é comum a concordância funcionar de outra forma.

Nós pega o peixe.

nós = 1ª pessoa, plural
pega = 3ª pessoa, singular

Os menino pega o peixe.

menino = 3ª pessoa, ideia de plural (por causa do “os”)
pega = 3ª pessoa, singular

Nos dois exemplos, apesar de o verbo estar no singular, quem ouve a frase sabe que há mais de uma pessoa envolvida na ação de pegar o peixe. Mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala.

     O capítulo todo tem 17 páginas. O texto que está recuado acima não chega a duas páginas e é o que está provocando toda essa celeuma. Na introdução do capítulo, os autores salientam que a língua é um instrumento de poder. A polêmica está provando isso. Os exemplos usados nada mais são do que a fala da gente simples, que jamais terá o “poder” de um cronista ou articulista da nossa imprensa ou de um especialista em gramática (leia-se norma culta) de nossas universidades.
     Se o tema lhe interessar, não deixe de ler o capítulo todo em um desses links:
http://www.advivo.com.br/sites/default/files/documentos/v6cap1.pdf

http://zerohora.clicrbs.com.br/pdf/11055740.pdf

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     Coloquei no Google o título do livro, Por uma vida melhor, acompanhado das palavras-chave livro e EJA. O buscador retornou 643 mil resultados. Escolhi aleatoriamente uma dessas entradas. Era a notícia de que a Associação Brasileira de Letras criticara o livro e havia inúmeros comentários de leitores. A grande maioria dando força para o texto. Selecionei alguns dos poucos que faziam o contrário, ou seja, criticavam o texto e davam força para o livro. Eis um deles:

Vergonhosa mesmo é a reação da mídia até o momento. Totalmente desinformados. Todos defendem a Gramática tradicional em detrimento da ciência que se chama Linguística. Assim como a Física Quântica e a da Relatividade, as duas não se “bicam” mesmo. Todos devem estudar um pouco mais e saber que nada há de errado no conteúdo do livro da escritora Heloísa Ramos, que o MEC, acertadamente, defende. Basta consultar Marcos Bagno, Sírio Possenti, este, um dos principais membros da Academia Brasileira de Letras, dentre outros.
É uma pena que estas pessoas achem que o idioma é estático e nunca muda. Há vida nas línguas de qualquer país e, por isso, mudam a cada geração. O Português não é diferente. Leiam qualquer obra do século XVIII ou XIX para verem que a Linguística está correta. Defender a rigidez que prega Pasquale Cipro Neto é atentar contra a inteligência do falante.

     Nesse mesmo site havia um comentário que considero uma pérola, ainda mais vindo de um, pasme, “professor”:

Um absurdo!!! Só pode ser brincadeira…, e por sinal de muito mal (SIC) gosto. Livro didático, pregando que é possível e admissível erros grosseiros (SIC) de portugues (SIC), comprado com o dinheiro público pelo MEC, para ensinar jovens brasileiros… essa a verdadeira herança maldita. E me perdoem os outros, mas são um bando de PTistas interesseiros. Deve ter havido dinheiro por fora e alguns sempre levando uma vantagem – a famosa lei de Gerson .Triste, muito triste ver pessoas que ainda vão defender essa nova lingistica… (SIC), incrível mesmo. E ainda vão se dar (?) de “cultos”. Como professor, já lhes aponto grandes problemas futuros: com a desvalorização e desrespeito por que passam os professores de todos os níveis e por todo nosso país, tenho certeza, que em futuro próximo, veremos professores sendo processados por “preconceito liguístico” (SIC) por estudantes interessados nessa educação que se prega. É triste… e é de envergonhar qualquer um. No fundo é de dar nojo de ver o que estão fazendo com a educação no Brasil. Dessa forma vai ser dificil (SIC) dizer que querem investir na educação para libertar o povo brasileiro e fazermos nós que o Brasil dê um salto de qualidade. Assim, com essas coisas acontecendo por aqui, vamos sim nos enterrar na imbecilidade de “alguns”, infelizmente. Pobre desse Brasil.

     Pobres dos alunos desse professor que não sabe, por exemplo, a diferença entre mal e mau, que não acentua palavras e que não sabe o que é “linguística”, mas conhece muito bem a lingistica e inventou o preconceito ligístico.
     Quanto aos “istas”, sejam eles da imprensa ou da gramática, que me perdoem, mas é muita ignorância não entenderem que a língua é um organismo vivo, em constante movimento, e que isso deve ser ensinado.
     Quando estava no ginásio, na década de 60, aprendi a concordar o numeral da porcentagem dessa forma: 60 por cento dos gaúchos ainda não entregaram a declaração de rendimentos ou 60 por cento da população gaúcha ainda não entregaram a declaração de rendimentos. Com o tempo, por desconhecerem essa regra — decerto por algum problema entre o tico e o teco, ou melhor, entre a semântica e a sintaxe —, os redatores de jornal começaram a escrever assim: 60 por cento da população gaúcha ainda não entregou a declaração de rendimentos. Em vista disso, os gramáticos de ocasião passaram a considerar correta essa forma. Não sei como ficaria se, ao escrever, resolvesse inverter a ordem da frase: Da população gaúcha, 60 por cento ainda não (entregou ou entregaram?) a declaração de rendimentos. Há vários exemplos como esse, em que o uso da língua por incultos acabou mudando a regra dita culta.
Veja os textos a seguir. Eles são a prova de que a língua muda.

Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo

Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento.

(Trecho de crônica escrita em português arcaico na primeira metade do século XV, de Fernão Lopes, escrivão de livros do rei D. João I e escrivão do infante D. Fernando.)

Gréve dos Alfaiates – Esteve, hontem, na Chefatura de Policia, o official alfaiate Ulysses Henrich, que entregou ao dr. Vasco Bandeira, chefe de policia, um officio em que a União dos Alfaiates diz que nenhum grevista tentou, até hoje, aggredir qualquer collega. Depois de ouvil-o, o dr. Bandeira declarou...

(Trecho de notícia publicada no Correio do Povo em 19 de maio de 1911)

     Daqui a alguns anos, todos estarão escrevendo e dizendo que “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” ou que “nós pega o peixe” e os cronistas e gramáticos do futuro estarão defendendo essa forma como a mais culta e absoluta. Não sei se a regra será considerada melhor ou pior que a do passado, mas espero que a vida seja melhor.

domingo, 8 de maio de 2011

Saravá! Quando a fé fere o direito.

Diante dos direitos e deveres individuais e coletivos garantidos na Constituição Federal no art. 5º, especificamente no Inciso VI, ‘é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’, ou do Código Penal sobre os crimes contra o sentimento religioso em seu art. 208: ‘Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso’, faz-se necessária a apresentação deste projeto de lei que define, em parágrafo único, a garantia constitucional que vem sendo violada por interpretações dúbias e inadequadas da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003 que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais. Face a essa dubiedade de interpretação, os Templos Religiosos de matriz africana vêm sendo interpelados e autuados sob influência e manifestação de setores da sociedade civil que usam indevidamente esta lei para denunciar ao poder público práticas que, no seu ponto de vista, maltratam os animais.

     O texto acima, de 06 de agosto de 2003, é a justificativa do então deputado Edson Portilho (PT), por ocasião da apresentação de seu Projeto de Lei Nº 282/2003, que acrescentava parágrafo único ao art. 2º da lei nº 11.915, de maio de 2003, que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul.
     O projeto foi aprovado por 32 votos a dois pelo plenário da Assembléia Legislativa e, após, sancionado pelo governador Germano Rigotto, em julho de 2004. Depois da iniciativa do hoje em dia vereador em Sapucaia do Sul, Edson Portilho, a redação do artigo 2º do Código Estadual de Proteção aos Animais ficou assim:

Art. 2º - É vedado:

I. ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;

.../...

Parágrafo único - Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.

     A gritaria dos protetores dos animais foi geral. Até hoje recebo emails condenando o ex-deputado, seu Projeto de Lei e os demais deputados que votaram a favor, como se o assunto fosse novidade. Se procurarem no Google as palavras “lei edson portilho” vão receber mais de 100 mil resultados. O surpreendente é que mais de 80 mil são de 2010. Ô, gentinha que dorme no ponto! Depois de seis anos de o Código estar em vigor com o tal parágrafo, resolveram comentar o assunto.
     Sempre que recebo emails de protetores de animais ou de simpatizantes de animais e dos protetores desses, tratando do tema como se fosse novidade, ou seja, “informando-me” do acontecido, imediatamente informo-os sobre a chata e inoportuna defasagem temporal da indignação. Pô! O troço aconteceu em 2003-2004 e estão falando como se fosse hoje! Mas isso não vem ao caso. Enfim, o Código teve seu texto alterado e, desde então, ninguém pode reclamar dos sacrifícios de animais que certa religião promove a título de crença, de ritual, de liturgia e os cambau. Sifu os demais.
     Já escrevi aqui sobre isso (Galos de despachos) e, hoje, não quero falar sobre o direito de os animais — no caso galos — não serem mortos para realização dos rituais, mas sim do direito de quem mora perto das encruzilhadas preferidas por esses religiosos.
     Nunca achei que matar galos pra colocar em despachos fosse crueldade com animais. O sacrifício da morte existe seja qual for o destino dado ao cadáver: um despacho, um casaco ou uma mesa de almoço ou jantar. O galo, a chinchila e o boi vão morrer contra sua vontade. O que me causa indignação, no caso dos despachos, é o cadáver ficar ali exposto, sob o sol, sob o olhar de todos, inclusive das crianças. Por que isso não pode ser feito dentro dos terreiros, assim como são os rituais nas igrejas, nas mesquitas e sinagogas? Por que tem que ser nas esquinas das ruas onde a gente vive? Entendo que o direito de alguém professar sua fé através de ritos religiosos termina onde começa o meu direito à higiene, a saúde pública ou individual.
     Já falei várias vezes desse bairro deselegante em que moro. E moro numa esquina classificada como encruzilhada estratégica por religiosos de certa crença. Esses religiosos teimam em escolher essa esquina como altar para seus ritos. Seguidamente tem nela um despacho com o cadáver de um galo entre grãos de pipoca, sobre um arranjo de folhas de jornal e papel de seda vermelho. Hoje, domingo, Dia das Mães, a rua amanheceu com três cadáveres de galos — um preto, um marrom e um branco — espalhados sobre as calçadas. Algum cachorro grande e novo na zona resolveu, durante a madrugada, jantar os galos mortos. Não conseguindo devorá-los por inteiro, deixou-os mastigados entre as penas que se soltaram.
     Uma coisa que se tolera é ver os galos mortos sobre os despachos nas esquinas; outra, intolerável, é vê-los espalhados pelas calçadas. Repugnante!
     Lamento não ter condenado, na época, a iniciativa do então deputado Edson Portilho. Que os praticantes dessa religião que mata galos e os coloca em esquinas tenham em mente que a Constituição lhes garante “proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Entendo, contudo, que essas liturgias devam ficar restritas aos locais de culto e que estes não sejam as esquinas das ruas, que são públicas e de todos, inclusive de quem professa outra fé.

sábado, 7 de maio de 2011

Não requer prática nem habilidade, pode-se fazer com a maior facilidade!

O título desta postagem é um antigo bordão que costumava ouvir dos camelôs do centro de Porto Alegre, na minha adolescência. Usei-o como título de uma reportagem que fiz em 1977, quando cursava o 6º semestre de jornalismo na PUC. O trabalho ganhou primeiro lugar em reportagem para estudantes, no I Prêmio Anual do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Porto Alegre. A matéria foi publicada no jornal Comunicação, informativo do Sindicato, em dezembro daquele ano. Achei um exemplar e reproduzo abaixo a reportagem.

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“É o gigante, o balão japonês, olhaí! Óia a lixa pra péis, pra senhora e cavalheiro! É a novidade, é o raibanspeiado! A moda do Rio e São Paulo, agora aqui. A mais prática carteira pra documento: dá pra enganá até ladrão porque tem malandrage. Olhaí o balão japonês, a lixa pra péis, é unissex o raibanspeiado, a novidade, porta-documentos, lixa, óculos, gigante, o balão japonês...”

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     Misturando-se às vozes de quem passa, ao estridente som das discotecas e aos berros dos fanáticos religiosos está o pitoresco pregão dos camelôs. Suas vozes metálicas anunciam, na linguagem do povo, os seus coloridos produtos ao som da novidade. E assim vivem e fazem viver a família.
     De vez em quando, a fiscalização da SMIC (Secretaria Municipal da Indústria e Comércio) faz com que esses vendedores não registrados levantem-se ligeiro, carregando a mercadoria. A pena para quem não tem o registro é ter o produto do seu sustento apreendido. E pra retirá-lo deve pagar uma taxa.
     O romantismo abrutalhado de seus pregões já se incorporou à vida da Rua da Praia, da Voluntários e da Otávio Rocha, onde há maior quantidade de camelôs. Um ao lado do outro, vão vendendo óculos escuros, lixas pra pés, naftalina, bijuterias, lenços, meias, brinquedos, carteiras, de tudo um pouco.

SÓ DÁ PRA FAZER ISTO

     A maioria dos camelôs escolheu essa profissão, muitas vezes perigosa, por não ter condições de fazer outra coisa, como Matias, que há 22 anos vende na rua. “Já vendi de tudo um pouco e nunca fui registrado. A papelada que eles pede é demais e, sendo doente como ... Há quatro anos estou encostado no INPS e só disso não dá pra vivê.” Matias não usa o “pregão” pra vender o seu peixe na Rua da Praia. “Eu fico aqui parado, os fregueis chega, fala comigo e compra. Este ponto é bom porque passa bastante gente. As lojas não se importam. Tem umas que até fazem questã que a gente trabalhe defronte que é pra cuidá os mau elemento que entra pra sacaniá eles. Vendo a gente aqui eles respeita.”
     Batista está começando na profissão e o motivo da escolha é o mesmo: não pode fazer outra coisa. “Faz um ano que trabalho nisso porque me quebrei todo: perna, costela... Então não tenho oportunidade pra pegá noutro serviço mais pesado. De veiz em quando eu saio, umas duas veiz por semana, e, a pau-e-corda faço uns biscate”. Batista também não é registrado, mas não tem medo da fiscalização, nunca foi pego. “Quando eu vejo os fiscal me levanto e saio”. Batista tem mulher e quatro filhos. O sustento da família é o resultado de seu dia-a-dia vendendo lenços e brinquedos. “Quando bom eu tiro uns cem, cento e pouco por dia”.
     E a mercadoria vai saindo. Gente olha, gente para, gente pechincha, gente compra. Há aqueles que, constantemente, estão numa roda de pessoas. A sua propaganda é interessante e o pessoal quer ver como funciona o produto. Geralmente é novidade. Há poucos dias, um novo artigo apareceu. É uma carteira para documentos e dinheiro, com muitos truques. Põe-se o dinheiro solto na carteira, vira-se e o dinheiro está preso. De um lado se vê bastante dinheiro; do outro, pouco. E o camelô vai explicando o truque. Muita gente fica um pouco confusa e o vendedor repete a operação. Muitas vezes, as pessoas compram a novidade sem nem saber usar direito. “Eu não sei, olhei, achei legal. Agora, em casa, dou uma treinadinha e tudo bem”.

É UM BOM SERVIÇO

     Nem todos os camelôs o são por necessidade, por serem doentes ou encostados no INPS. Jurandir trabalha no ramo porque gosta. “Estou com 28 anos e trabalho desde os 18. Não tenho profissão e, graças a Deus, aqui me defendo mais melhó do que se fosse trabalhá de salário mínimo. Quase sempre tiro cento e poucos cruzeiros por dia e pago 35 por mês pro sindicato. Quem não é regularizado é porque não tão por dentro de onde deve ir. E depois tem plobrema com a fiscalização”.
     Célia acha que é um serviço bom. Estudou até a 7ª série, parou e, agora, é camelô. Além disso, Célia inaugura um novo emprego: trabalhar em banquinha de camelô. “Eu trabalhava fora antes. Agora aqui, ganhando 60 cruzeiros por dia na banca do seu Francisco. Acho que o seu Francisco veve bem do negócio. Eu mesma abro, eu mesma fecho e ele só vem aqui, recebe o dinheiro e pronto. Tem dias que dá mais de duzentos cruzeiros; noutros, quase não dá. O seu Francisco tem carteirinha e tudo, e nesta semana ele caminhando pra botá o meu nome na carteirinha. Cruiz credo! Se a fiscalização chega, nem sei...”

AGRESSÕES

     “Os camelôs também são gente e têm o direito de trabalhar como todo mundo”. Assim Carlos Eisenhut Filho, presidente do Sindicato dos Vendedores Ambulantes e Feirantes do Estado do Rio Grande do Sul, fala dos camelôs e das agressões e intimidações que a categoria vem sofrendo ultimamente. “A SMIC, a Prefeitura e a Brigada Militar — explica Eisenhut — não são responsáveis pelas agressões que vêm sofrendo os vendedores ambulantes e os camelôs”. E denuncia: “o responsável é o senhor Alécio Ughini, diretor da Associação Comercial de Porto Alegre. Ele quer a retirada dos camelôs dos seus pontos de trabalho”. Mas o Sindicato só pode agir em favor daqueles que estão devidamente legalizados, que tenham alvará da SMIC e sejam filiados ao órgão de classe. “Se for necessário — diz Eisenut —, iremos às últimas consequências”.
     A profissão de camelô está devidamente regulamentada pela Lei Nº 3.187. Ela estabelece as condições para que o trabalhador seja regularizado. O primeiro passo é que seja cadastrado na SMIC e, depois, se sindicalize. Assim, ele receberá um crachá e um ponto para trabalhar.
     “São trabalhadores honestos e assim devem ser reconhecidos”, diz Eisenhut.

HONESTIDADE DUVIDOSA

     Mas há uma certa malícia na “honestidade” de alguns. Comop no caso daqueles cachorrinhos de brinquedo que só latem na mão do camelô. Com um apito escondido sob a língua, o vendedor faz o som ao mesmo tempo em que aperta o sifão que move o cachorro. O desavisado que compra, leva pra casa um cachorrinho mudo.
     Outros têm um esquema tão bem bolado que chega a ser um caso de marketing. Enquanto apregoa o seu artigo, o pessoal olha desconfiado. De repente, alguém se deixa levar. Logo, mais outro também decide comprar. E o pessoal começa a adquirir a mercadoria, incentivado pelos primeiros compradores. Passando um tempo, quando não há mais nenguém por perto, voltam os dois primeiros, devolvem a mercadoria e recebem de volta o dinheiro. Assim que o pregão chama mais gente, a operação recomeça.

O PROBLEMA DO CEGUINHO

O Arthur ainda é daqueles que fazem propaganda da mercadoria, mas honestamente, sem contar com qualquer esquema. A falta de visão talvez lhe tenha deixado aquele ar de paciência. Na Rua da Praia, alheio à passarela de urgentes executivos, misses de verão e paqueradores inoportunos, vai anunciando a sua naftalina, com voz forte e pausada. E sópara pra fumar de vez em quando.
     “A gente vive porque não tem outro recurso de negócio. Não dá pra fazer boas vendas, pra trazer conforto pra dentro de casa como seria interessante. Tenho minha senhora e um gurizinho pra sustentar. Ganho também do INPS, mas não chega. Não me associo ao Sindicato porque, com o que ganho na rua, não dá pra pagar a mensalidade. Algum tempo atrás, quando o prefeito quis pôr as primeiras bancas pra cegos, eu fui um dos contemplados com um ponto. Aí fui trabalhar numa firma e perdi o ponto. Quando eu voltei, o prefeito tinha cancelado os pontos de banca. Quem tinha, tinha; quem não tinha teve que ir vender na rua. Se eu tivesse uma banquinha de bijuterias ou de frutas, conforme outros cegos têm aí, tranquilo, dava pra pagar o Sindicato e ainda levar um melhor conforto pra casa. No verão dá pra defendê uns 60 por dia, mas, no inverno, a gente tira 30 cruzeiros, quando muito”.
     Com a escuridão nos olhos, Arthur solta o berro metálico do seu pregão:

“É naftantzantdrop. É dois cruzeiro o pacote. É con-tra-tra-ç’e barata. É dois cruzeiro o pacote!”

     E os pregões que ainda restam, seguem anunciando de tudo um pouco. Os recursos ficam cada vez mais sofisticados. Os antigos e criativos camelôs, com seus textos rebuscados, deixam o ponto para a gurizada arisca. A burocracia dos alvarás toma conta do romantismo folclórico. A pressa atropela o pitoresco. Quem não lembra da antiga Praça Parobé, da cobra Catarina e do lagarto José?

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     Desde fevereiro de 2009, os camelôs do centro de Porto Alegre estão abrigados no que era pra ser inicialmente o Centro Popular de Compras, mas que acabou sendo conhecido como “Camelódromo” e chamado de “Shopping do Porto”, apesar de certo deputado querer acabar com os estrangeirismos.
     O projeto, de iniciativa público-privada, tirou das ruas cerca de 800 camelôs e lhes concedeu um lugar com toda a infra-estrutura necessária para a prática do comércio. Localizado na Rua Voluntários da Pátria, o camelódromo comporta 800 lojas, praça de alimentação, lotérica, caixas eletrônicos, restaurante temático e estacionamento. Além disso, tem duas passarelas com vista panorâmica sobre a movimentada Avenida Júlio de Castilhos.
     Em 2010, o Shopping do Porto venceu Prêmio Top de Marketing da ADVB/RS na categoria Pólos Comerciais.
     Os camelôs — como eram chamados antigamente os vendedores ambulantes — são, hoje, prósperos empresários, locatários de lojas em um shopping, e já não anunciam mais “raibanspeiados”.
     Ficou curioso pra saber o que seriam “raibanspeiados”? Trata-se de óculos de sombra, comumente chamados de Ray Ban — que é uma marca e não um tipo de óculos —, com as lentes espelhadas, surgidos na década de 70.