Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







sábado, 30 de abril de 2011

Ponto de venda

      Da minha janela de observação vi que picharam o tronco de uma árvore em frente, no outro lado da rua. Uma injúria. Não à árvore, mas à Polícia Militar. Alguém escreveu ali, bem legível: PM PUTO. Percebi de cara que não era uma simples pichação, pois a letra não era de pichador. Era uma ação objetivando denegrir a imagem de um adversário. Vou explicar.
     Moro no Partenon, um bairro de Porto Alegre cuja história começou quando alguns literatos da cidade passaram a se encontrar com certa frequência e, desses encontros, nasceu a Sociedade Partenon Literário, oficialmente fundada em 1868. Com o aumento de prestígio da sociedade, foi proposta a construção de uma sede. Em um terreno doado por um de seus membros, localizado no topo de um morro, onde hoje é a Igreja de Santo Antônio, os integrantes da sociedade sonhavam construir uma réplica do Partenon grego. Em 1873 foi lançada a pedra fundamental da sede. A ideia, contudo, não prosperou. Ao mesmo tempo, um grande plano de urbanização e loteamento da área encontrava-se em curso. Num acordo com os membros da sociedade, o loteamento utilizaria o nome “Partenon” e a sociedade receberia parte da terra a ser loteada. Em 1899, porém, a sociedade se dissolveu e doou seus terrenos à Santa Casa de Misericórdia (a sociedade teve suas atividades reiniciadas muitos anos depois, em 1997).
     O bairro, no entanto, sobreviveu com o nome do templo grego e nele, hoje, entre outras coisas, há um dos mais afamados pontos de drogas da cidade, motivo daquela pichação no tronco da árvore.
     Só vim a conhecer o Partenon há pouco mais de cinco anos — antes disso era só de passagem —, quando me mudei para bem perto da famosa boca de fumo e já era tarde pra voltar atrás. Com o tempo descobri que era seguro morar por aqui, pois a presença do ponto e de seus controladores afasta da vizinhança outros tipos de delinquentes, como ladrões de automóveis e assaltantes, que operam livremente noutros bairros. Percebi que a convivência era pacífica e que, inclusive, até a polícia pouco se importava com o comércio ilegal ali instalado.
     Até um tempo atrás, os consumidores procuravam o “vendedor” a qualquer hora do dia. E eram atendidos prontamente. Havia um “plantonista” 24 horas a espera dos compradores. Sinal de que, apesar da grande procura, a mercadoria era bastante ofertada a granel. Nas sextas-feiras e sábados, o movimento aumentava um pouco e havia certa fila de espera, mas nada preocupante.
     De um tempo pra cá, ficaram mais assíduas grandes apreensões de drogas e prisões de traficantes no Estado. Ao mesmo tempo, a polícia começou a ficar mais constante no bairro, aparecendo a qualquer hora, até mais de uma vez por dia. Quando não vem de carro, vem de moto; quando não vem de moto, vem de bicicleta; e assim por diante. Acho que as apreensões de drogas e prisões de traficantes também causaram apreensão nos donos do mercado, que passaram a receber menos mercadoria e/ou a controlar mais sua saída. Uma das consequências foi o acúmulo de consumidores nas ruas próximas. A uma quadra do ponto fica reunido um grupo grande; um pouco mais acima, esparsos, outros grupos, de dois, três ou quatro, e alguns automóveis estacionados; na rua da boca, pouco abaixo do ponto, vários consumidores disfarçados de moradores do bairro ficam encostados nas paredes, batendo bola, etc.. De repente, aparece alguém, pode ser um garoto ou uma garota, uma mulher ou um homem e grita algo como “— Tá na mão!” e a turba parte dos diversos pontos de encontro e se dirige para uma espécie de guichê, onde adquire uma porção da variedade dos produtos ali vendidos.
     Dia desses fui buscar o carro que havia deixado para lavar a uns 30 metros do ponto. Quando me aproximava da lavagem, uma mulher gritou:— Fulano mandou dizer que tá na mão! Fui envolvido por uma massa de consumidores que praticamente me arrastava pela rua, em direção ao vendedor. Consegui escapar, atravessei a rua e acelerei o passo até a lavagem de carros.
     A árvore que foi pichada fica na esquina em frente a minha janela, onde sempre há um grupo reunido, esperando que o mercado abra. Seguidamente, a polícia para o carro ou as motos ou as bicicletas e dá um atraque nos “manos” ali parados. Mãos na parede, pernas abertas, uma revista, documentos verificados, um sermão e uma ordem pra circular. Os caras desaparecem. Quando voltam, o mercado já fechou e eles ficaram sem a mercadoria. Se ficarem ali parados esperando abrir de novo podem ser “reatracados” e a coisa vai ficar feia. Numa dessas, um dos manos, muito irritado, deixou sua raiva escrita no tronco da árvore “PM PUTO”. A inscrição vai ficar ali por um bom tempo, incrustada na casca da árvore, junto aos fungos que a habitam, mas, acredito, menos tempo do que os vendedores e do que os grupos de consumidores reunidos esperando abrir o mercado da droga. Esses vão durar mais. Talvez pra sempre.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Marketing {estratégia empresarial de otimização de lucros por meio da adequação da produção e oferta de mercadorias ou serviços às necessidades e ...

...preferências dos consumidores, recorrendo a pesquisas de mercado, design [a concepção de um produto (máquina, utensílio, mobiliário, embalagem, publicação etc.), especialmente no que se refere à sua forma física e funcionalidade], campanhas publicitárias, atendimentos pós-venda etc.}

marketing

     Tá difícil de entender o porquê desse título? Simples. Estou tentando me acostumar com a nova lei aprovada pela Assembleia gaúcha. Trata-se do Projeto 156/2009, do deputado Raul Carrion (PCdoB), que obriga a tradução de expressões ou palavras estrangeiras para a língua portuguesa, sempre que houver no idioma uma palavra ou expressão equivalente. Se, no entanto, não houver palavra ou expressão equivalente em português, diz o texto aprovado, uma tradução deverá acompanhar com o mesmo tamanho e destaque o intruso linguístico. Foi, então, o que fiz: apesar de o estrangeirismo “marketing” já estar incluído nos dicionários de língua portuguesa, como não tem equivalente no nosso idioma, coloquei uma explicação sobre o significado do termo, com o mesmo destaque.
     Um detalhe interessante é que a explicação do termo marketing menciona outro estrangeirismo, design, que também tive que explicar, sob risco de o leitor não saber sobre o que estava falando, de acordo com o deputado Raul Carrion. Design até teria tradução: como substantivo, pode significar projeto, desenho, desígnio, modelo, plano, esquema, esboço, planta, risco, enredo; como verbo, pode ser projetar, desenhar, planejar, delinear, designar, esboçar, tencionar, destinar. Devido à complexidade, achei mais fácil explicar o termo do que traduzi-lo. Aliás, marketing, grosso modo, poderia ser traduzido como mercadologia, só que o próprio dicionário manda olhar o termo marketing quando se procura uma acepção de mercadologia. Vá entender!
     O princípio da lei é muito simples: traduz-se ou explica-se o estrangeirismo, como observado no título deste texto. Ou seja: várias linhas no lugar de uma palavra que, mesmo sendo estrangeira, em 99,99% dos casos já é conhecida por todos.
     Um dos argumentos do deputado é o caso de palavras que provocam confusão nos consumidores como “light” e “diet”. Diz o parlamentar que muitas vezes são entendidas como sinônimas, mas possuem significados distintos. Carrion entende que os diabéticos correm risco de morte ao fazerem essa confusão.
     Eu acho que traduzir a palavra light num rótulo soaria meio estranho. Num produto desse tipo a tradução seria “leve”, que, na verdade, não leva a nada. Talvez uma explicação fosse mais correto: produto cujo valor calórico é comparativamente mais baixo ou que é feito com outro(s) adoçante(s) que não o açúcar. Já o estrangeirismo diet pode ser traduzido por dietético. Pronto. É só fazer isso que os diabéticos não correrão riscos.
     Cá pra nós: nesse caso específico, depois de tantos anos que esses conceitos estão arraigados, só se o doente em questão for muito idiota ou não tiver um médico a lhe orientar sobre o que pode ou não comer e beber.
     Fico imaginando os cardápios de muitos restaurantes e lancherias. Hamburger, por exemplo, não tem equivalente em português, mas já está aportuguesado, virou hambúrguer, com acento agudo e u entre o g e o e. Se tiver que explicar, ficará assim: bife geralmente de forma redonda, aglomerado com carne moída e outros elementos, que costuma ser servido dentro de um pão também redondo. Cheeseburger, por sua vez, não tem equivalente em português nem está aportuguesado. Desde que se tenha em mente o que é hambúrguer, contudo, é fácil de explicar o que é um cheeseburger: hambúrguer ('sanduíche') com queijo fatiado. Viu como é simples!
     Bom, mas eu vim aqui pra falar de marketing {estratégia empresarial de otimização de lucros por meio da adequação da produção e oferta de mercadorias ou serviços às necessidades e preferências dos consumidores, recorrendo a pesquisas de mercado, design [a concepção de um produto (máquina, utensílio, mobiliário, embalagem, publicação etc.), especialmente no que se refere à sua forma física e funcionalidade], campanhas publicitárias, atendimentos pós-venda etc.}... Ih! Acabei me esquecendo. Fica pra próxima.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Vontade é uma coisa que dá e passa?

     Um dia, O Magro do Bonfa, personagem do humorista André Damasceno, disse em plena aula, em voz alta: — Bah! Tô cuma vontade de comer de novo a Luma de Oliveira! Imediatamente, o professor Damasceno questionou-o: — Qualé, Magro, e por acaso tu já comeu a Luma de Oliveira? E a resposta: — Não, mas to cum vontade de novo!
     Só sei isso da história. Não sei se o Magro matou sua vontade de novo ou não. Se já tinha matado uma vez, sabe-se lá como, seria fácil matá-la de novo; caso contrário, era só esperar, pois, segundo o dito popular, ela passaria.
     O bordão do título pode funcionar para algumas coisas, como a do Magro. Ele sente a vontade de transar com alguém específico, fora de seu alcance e de seu cacife. Como não pode, dá um jeito ou esquece. Por outro lado, a vontade seria satisfeita se o ato fosse realizado com alguém possível. Outro exemplo é o caso de vontade para necessidades fisiológicas, que também é fácil de resolver. Se der vontade, é só fazer e pronto, desde que haja certas condições. Experimente dizer que vontade é uma coisa que dá e passa pra alguém que antes de embarcar num ônibus intermunicipal, sem escala e sem WC, comeu um pastel na rodoviária do interior e a azeitona fez mal. Será que a vontade que deu dentro do ônibus, no meio da estrada, vai passar assim, sem mais nem menos? Duvido, nesses casos, a vontade só passa quando satisfeita.
     Afinal, o que é vontade? Entre outras coisas, é a “faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão.” Olha só: um ato que pode ou não ser praticado! Dependendo do tipo de ato, a vontade não vai passar se ele não for praticado.
     Por que, afinal, esse papo de vontade e a referência ao bordão do título? Simples: porque estou com vontade de fumar, mas, como parei, não vou satisfazê-la. Mas quem disse que vai passar?

vontade de fumar
     Pra me ajudar a parar de fumar, participei do “Programa de Cessação do Tabagismo” da UFRGS, uma parceria entre Departamento de Atenção à Saúde e o Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia. O programa utiliza técnicas de abordagem cognitivo comportamental que auxiliam a parar de fumar. Foram quatro encontros, um por semana, nos quais o grupo participante ouviu e falou sobre temas como dependência química, psicológica e comportamental, estratégias para deixar de fumar, síndrome de abstinência e exame de crenças e pensamentos disfuncionais sobre o uso do cigarro, entre outros. Como não poderia deixar de ser, uma frase recorrente em todos os encontros foi a famosa “vontade é uma coisa que dá e passa”, complementada por outra: “não nascemos fumando”.
     Depois do segundo encontro, resolvi diminuir o consumo pela metade: de 20 cigarros por dia, passei para 8 ou 10. Nas horas daqueles cigarros que não fumei nesses dias, contudo, me dava vontade que só passava quando eu acendia o próximo cigarro. Assim, eu tinha de 12 a 10 “vontades” de fumar por dia, ou seja: não esperava pra ver se a vontade passava, como me disseram tantas e tantas vezes durante o programa.
     Fiz um trato comigo mesmo: pararia totalmente de fumar assim que terminasse o maço de cigarros que estivesse em uso no último encontro. E ele terminou na manhã do dia seguinte (já falei sobre isso na postagem abaixo desta). Faz, portanto, mais de uma semana que parei de fumar, mas a vontade continua.
     Aos poucos vou aprendendo a conviver com a lenda que diz que “vontade é uma coisa que dá e passa”. É claro, quando ela é muito forte, tem-se que dar um jeito e disfarçar fazendo outra coisa. Conheço gente que deixou de fumar há mais de 20 anos, mas que ainda sente vontade de vez em quando.
     Portanto, se o ato é possível de ser executado, a vontade de efetivá-lo só passa se for satisfeita. Então: não é qualquer vontade que passa.

sábado, 9 de abril de 2011

Fissura

     Um dos significados da palavra fissura encontrados nos dicionários — que a trata como gíria ou regionalismo — diz que é “um apego extremo; forte inclinação; loucura, paixão, ânsia, sofreguidão”. A gente costuma dizer que “fulano é ‘fissurado’ em beltrana” ou vice-versa. Neste momento, estou fissurado. Sabem pelo quê? Vamos aos fatos.
 
Quinta-feira - 07 de abril (Dia do Jornalista — fato que não tem nada a ver com esta crônica)

     7h30 - Acendi o primeiro cigarro do dia, como se esse dia e esse cigarro fossem os mais normais e comuns da minha vida. Duas semanas atrás já seria o terceiro cigarro do dia. Recém havia tomado um cafezinho no Bar do Antônio. Já tinha assinado o ponto e ligado o computador. Agora, estava fumando no saguão do 8º andar, em frente aos elevadores, olhando pela janela o movimento dos ônibus e automóveis em direção ao Túnel da Conceição. Após cada tragada, olhava para o cigarro, ou o que ainda restava dele, e soltava a fumaça pelo nariz, como não fazia há muito tempo. Havia em mim um misto de “que bom que está terminando” com “que pena que está terminando”. Quando a brasa estava quase no filtro, levei-o ao sanitário e, gentilmente, afoguei-o no vaso. Ao trabalho.
 
     9h10 - Acabei o lanche: um sanduíche com pão de forma, queijo, peito de peru, requeijão, tomate e alface, que trago de casa. Voltei ao saguão, onde, agora, algumas pessoas estão sentadas em volta das mesas que têm ali. Meio sem jeito, acendo o segundo cigarro do dia. Numa época recente já seria o quinto ou sexto. Fico na janela, de costas pras pessoas no saguão. Meio desconfiado, olho pra trás de vez em quando pra ver se não estão fazendo cara feia por causa do cheiro do cigarro. Não estão nem aí. E até poderiam fazer valer seus direitos, impressos no pequeno cartaz afixado na parede: “Conforme Lei Federal nº 9.294, de 15 de julho de 1996, art. 2º, parágrafo 1º, é proibido fumar em todos os recintos desta Universidade”. Acabou. Mais um que afogo no vaso sanitário. Ao trabalho de novo.
 
     11h - Minha colega me convida pra descer até o estacionamento pra esticar as pernas. Precisa passar do carro dela para o meu dois laptops da minha nora, que o marido dela consertara. Concordei e acrescentei que seria bom fumar meu último cigarro ao ar livre, sem precisar me constranger com os não fumadores. Ela ficou feliz de poder ser testemunha desse momento, ou seja, de me ver fumar meu último cigarro, não só do dia, mas da vida. Peguei o cigarro do maço, amassei-o (o maço, não o cigarro) e, antes de jogá-lo no lixo, fotografei-o para a posteridade e para ilustrar essa crônica. Descemos e, depois de trasladar os computadores, acendi o cigarro. Estava na rua, sob as árvores do estacionamento, o dia maravilhoso e eu sentindo, ao mesmo tempo, o prazer e o desgosto de fumar pela última vez. O cigarro acabou. Larguei-o no chão e, num gesto carregado de simbolismo, tentei esmagá-lo com o pé. Não é que o desgraçado rolou e ficou numa depressão entre dois paralelepípedos do estacionamento! Azar, só vai fumegar por mais um ou dois segundos mesmo. Ao trabalho, porque a vida continua.

Sexta-feira - 08 de abril
 
     11h - Estou há 24 horas sem fumar. Fora isso, nada mudou na minha rotina: tomei cafezinho e chimarrão, fiz lanche, etc.
     Um dia inteirinho sem fumar. Tá me dando “fissura“!
     Cheguei onde queria com o título deste texto. O termo “fissura“ é usado para descrever o mal-estar e a vontade intensa de fumar. Neste momento, estou fissurado por um cigarro. É natural, a síndrome da abstinência está pegando. Sei, contudo, que essa vontade dá e passa. A nicotina é uma substância psicoativa que causa a chamada dependência física. Os primeiros dias sem cigarro são difíceis, mas, depois desse período, ficar sem fumar será mais fácil. Serão dias sem fissura.
     Depois da fissura pela ausência da nicotina, terei que lidar com fissura da dependência psicológica do cigarro, que se refere ao sentido ou à função que o cigarro tem na vida dos usuários. Muitos fumantes, por exemplo, costumam fumar em situações de estresse, quando estão tensos, pois sentem que o cigarro os relaxa. Está, então, criada uma associação psicológica. Outros fumam como uma forma de lidar com a solidão. O cigarro faz as vezes de um amigo próximo, que nos acompanha. Assim, um fumante se entristece ao pensar em parar de fumar, em perder um companheiro. Alguns acreditam que o cigarro os estimula a serem criativos, por isso fumam quando estão trabalhando; ou fumam quando se divertem, pois o cigarro lhes dá prazer. Tudo isso torna o fumante psicologicamente dependente do cigarro.
     Além dessas duas formas de dependência, há, ainda, a comportamental. O ato de fumar envolve várias associações de comportamento ligadas a hábitos individuais e sociais. Um exemplo disso é vincular o ato de fumar ao de tomar um cafezinho. O sujeito começou acendendo um cigarro depois do café, porque lhe parecia um momento adequado. Com algumas repetições, essas associações se tornaram constantes e, agora, sempre que tomar um café vai sentir vontade de fumar. Outras associações comuns são: fumar e ingerir bebidas alcoólicas, fumar e falar ao telefone, fumar ao dirigir, ao escrever um relatório, ao ver televisão, depois de comer e após as relações sexuais.
 
Sábado – 09 de abril
 
     11h – 48 horas sem fumar. Não consigo traduzir em palavras o que a síndrome de abstinência faz comigo. Fico agitado, inquieto, querendo que as horas passem ligeiro, pois quanto mais distante ficar das 11 horas de quinta-feira, quando fumei o último cigarro, menor será meu mal-estar e menores as chances de eu ter uma recaída. Não! Isso não vai haver. Afinal, não é porque passei fumando 72% da minha vida até hoje que vá sucumbir a qualquer vontadezinha, né? Vamos em frente, com ou sem fissura. Tudo passa.

sábado, 2 de abril de 2011

Não fume a vida!


     Quando eu tinha 14 ou 15 anos, em 1964, era bonito fumar e grande o apelo para que se caísse nessa tentação. Na minha cabeça e na de meus amigos seríamos mais importantes, mais charmosos e mais machos se fumássemos, como os exemplos que víamos no cinema, na TV e na vida real. Foi assim que comecei, mesmo sem ter o modelo em casa, pois meu pai e minha mãe nunca colocaram um cigarro na boca.
nao fume
     Naquele tempo, eu e os guris da turma dividíamos os maços de cigarro que comprávamos em “súcia” com alguns trocados de cada um. Por serem escassos os recursos, os cigarros eram sempre os mais baratos, chamados de “matarratos”. Havia uma marca, Sissi longo, que era a preferida, porque seus cigarros eram maiores do que os normais. A gente cortava os cigarros ao meio e divida entre dois, três ou quatro. Depois, longe dos olhos familiares, íamos fumar escondidos em algum terreno baldio, construção ou casa abandonada.
     Tenho algumas passagens interessantes dessa época, envolvendo o cigarro. Meu pai soube que eu estava fumando por causa da escola. Eu estudava no Colégio Rosário. Os meninos do ginásio não podiam fumar nem nos arredores do colégio, só os do científico ou do clássico, que transformavam a praça Dom Sebastião num fumódromo durante o recreio e ao término das aulas. Eu, no entanto, ignorava essa proibição. Quando terminava a aula, eu e um colega íamos para o centro da praça, que era rodeada por um muro de arbusto, e dividíamos um cigarro. Uma pegadinha pra cada um. Certo dia, porém, fomos surpreendidos pelo irmão prefeito do ginásio, que resolveu dar uma “incerta”. Meu colega estava de frente pra ele e saiu correndo. Eu fui pego com a boca na botija, ou melhor, com a boca no cigarro. Imediatamente, o irmão prefeito pediu minha caderneta escolar e ordenou que meu pai fosse buscá-la. Ferrou (pra não dizer outra coisa)!
     A caderneta era o espelho do aluno e um instrumento de controle, supervisão e comunicação entre família e escola. Sempre que alguma coisa desse errado, a caderneta era recolhida e o pai ou a mãe deveriam ir buscá-la, porque sem ela não se podia entrar na escola.
     Muito inocente, disse pro meu pai que havia esquecido o livro de determinada disciplina, que era obrigatório, e que, por isso, minha caderneta fora sequestrada e ele deveria buscá-la para que eu pudesse entrar na escola. Na manhã seguinte, o prefeito recebeu meu pai no seu gabinete, enquanto eu fiquei sentado na frente da sala. Alguns minutinhos depois, o prefeito abre a porta e me chama. Entrei. Meu pai de pé, em frente à mesa do prefeito; o irmão segurando o trinco da porta para que eu entrasse; e eu com cara de cagado. Sem fechar a porta e sem soltar o trinco, o irmão prefeito me perguntou por que mesmo ele havia ficado com minha caderneta. Não tive escolha e disse a verdade. Com a caderneta na mão, fui para a aula, meu pai para o trabalho e o irmão prefeito ficou na sua sala, imagino que esfregando as mãos com um sorriso irônico.
     Meu pai não me xingou, apenas pediu que aquilo não se repetisse. Referia-se, é claro, ao ato de eu fumar, não ao fato de ter que buscar a caderneta. Prometi que não aconteceria novamente. Menti.
     Numa noite de algumas semanas depois, fui no cinema Presidente com os guris da rua. Na saída, na porta do cinema, imediatamente peguei um cigarro no bolso da camisa, coloquei-o entre os lábios e o acendi. Quando olhei pra frente, dei de cara com meu pai, que me esperava a uns cinco metros. Apressadamente, tirei o cigarro da boca, amassei-o e joguei-o no meio fio. Fiz de conta que não vi meu pai, entrei por uma das portas do restaurante ao lado do cinema e saí pela outra. Segui em frente rapidamente, com minha meia dúzia de amigos.
     Não fui direto pra casa. Ficamos um tempo na esquina, jogando conversa fora, comentando sobre o filme, etc. Eu sempre entrava em casa pela porta dos fundos, que não ficava chaveada até que eu chegasse. Naquela noite, entretanto, estava fechada. Bati e meu pai abriu-a. Antes que eu entrasse, estendeu em minha direção a mão onde estava o cigarro amassado que eu jogara fora pouco antes e me perguntou o que era aquilo. Claro que foi uma pergunta retórica. Fiquei com a maior cara de bunda, esperando a maior bronca, que não veio. Acho que aquele silêncio por trás dos olhos tristes do meu pai doeu mais do que se tivesse levado uma surra.
     Apesar do remorso, continuei fumando. Inclusive no colégio. As dependências do ginásio do Rosário eram separadas das do científico e clássico por portas de grades de ferro chaveadas. Aquelas fechaduras, no entanto, tinham a idade do colégio. Cediam a qualquer chave que se enfiasse nelas. Lá íamos nós, durante o recreio, bancando os bons na praça Dom Sebastião. A volta se dava por dentro do colégio, num caminho tortuoso que descobrimos por acaso. Essa rota envolvia a passagem pelo interior da capela. Um dia, eu e mais dois colegas fomos surpreendidos pelo irmão prefeito. Ao darmos de cara com ele dentro da capela, nos ajoelhamos e fingimos estar rezando. Saímos um de cada vez, achando que o prefeito não desconfiaria. Não adiantou. Ele vira que de onde viemos só poderíamos ter entrado por onde teoricamente não havia entrada. Fui o terceiro a sair. Quando me interpelou e perguntou onde fora e o que estava fazendo confessei que tinha ido à praça comer um cachorro quente. Mandou-me de volta à sala de aula, como fez com os que me antecederam.
     Findo o recreio, já estávamos nos acomodando nas carteiras, quando o irmão prefeito entrou na sala. Todos em silêncio, pediu licença para o professor, também irmão, e recomendou a ele que anotasse na caderneta dos meus dois colegas de aventura uma nota baixa por mal comportamento e aplicação porque tinham mentido que estavam rezando. “— Quanto ao senhor Aldo Jung – continuou –, pode dar um 10 pra ele, irmão, porque confessou estar ‘fumando’ um cachorro quente na praça”.
     Ainda há outras situações dramáticas — hoje cômicas — em que me envolvi por causa do cigarro, como a vez em que deixei cair o cigarro dentro do vestido da minha namorada. Ela estava com um vestido soltinho, preso por alças aos ombros, decotado, e não usava sutiã. Estávamos caminhando, eu com o braço sobre os ombros dela e com um cigarro entre os dedos da mão desse braço. De repente, deixei cair o cigarro, que se enfiou dentro do vestido, rolou para entre os seios dela, escorregou para mais abaixo e, depois de estacionar perto do umbigo, caiu no chão. Resultou em pequenas e esparsas queimaduras no corpinho da coitada.
 
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     Em 1984, vinte anos depois de começar a fumar, além de trabalhar na UFRGS e dar aulas na UNISINOS, comecei atividades na Rádio Guaíba. Peguei o horário das 18h às 23h. Era uma correria. Um dia, em pleno trabalho, tive uma tontura braba. Atribuí o fato ao cigarro. Imediatamente peguei o maço e o isqueiro e dei para o porteiro da noite. Parei de fumar.
     Dois anos depois, comecei de frescura, pedindo um cigarro aqui, outro ali e não deu outra: voltei a fumar, regular e covardemente, até hoje. Sem contar os dois anos em que fiquei afastado, são 46 anos desse vício maldito.
 
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     Hoje, fumantes são estigmatizados. Cada vez mais, o cerco se fecha sobre nós; cada vez restringem-se mais os locais em que se pode fumar. Precisando dar um jeito nisso, entrei num Programa de Cessação do Tabagismo. Tenho, então, três formas de dependência das quais devo me livrar: a química (nicotina); a psicológica; e a comportamental. Já consegui diminuir pela metade meu consumo. Nos próximos dias abandono totalmente esse velho companheiro das horas solitárias, que me ajuda a pensar, faz o tempo passar e me dá prazer.
     Já dói e vai doer ainda mais, mas não dá mais pra viver com o cigarro, vício considerado o pior de abandonar. Devo parar de fumar a vida!