Coisas que me dão na telha, de vez em quando, e que quero deixar registradas, nem que seja num blog.







quarta-feira, 22 de junho de 2011

Jogos de bola

     Nasci há muito tempo, numa casa que ficava em frente a uma pracinha que marcava a confluência de duas ruas. A pracinha, que já estava lá bem antes de eu nascer, era um triângulo isósceles de areia cercado por um meio-fio de paralelepípedos com dois lados medindo cerca de 10 metros e o menor, uns cinco metros. Lembrei-me da pracinha porque nela faziam-se grandes fogueiras na véspera de São João, em 23 de junho de todos os anos.
     Naquele espaço se jogava de tudo: bola de gude, taco, cela, vôlei e, principalmente, futebol. Diariamente, a partir das três da tarde, com os temas de casa feitos, a turma se envolvia com alguma espécie de bola, já que pra tudo que era praticado ali se precisava de pelo menos uma.
     Para jogar futebol faziam-se times de três, quatro, no máximo cinco pra cada lado, com um no gol e o resto na linha. Os dois considerados os melhores jogadores escolhiam no par ou ímpar os integrantes de seus times. Os jogos iam até 10 gols, com virada em cinco. Como se jogava em um triângulo, quem atacava no campo maior tinha mais chances de trabalhar a jogada e fazer gol. Em compensação, quem atacava para a ponta mandava a bola em gol desde que chutasse pra frente. No segundo tempo, porém, tudo se invertia.
     Havia pelo menos três faixas etárias de moleques naquela zona. Nos fins de semana, especialmente nas tardes de sábado, a pracinha era ocupada pelos mais velhos. Volta e meia acontecia algum torneio contra uma gurizada das ruas próximas. Invariavelmente dava briga.

Pracinha na década de 60

Foto na pracinha do início da década de 60 (sou o 2º em pé, da esquerda para a direita)

     Quando a bola ia pro meio da rua e estivesse passando algum carro, todos paravam. Era como o fair-play praticado nos esportes de hoje. Às vezes algum chute mais forte disparado para o lado — certamente por algum zagueiro desesperado — ia parar num dos vidros de uma janela da minha casa. Ficando comprovado que havia sido durante uma “séria” partida de futebol, tudo bem, era considerado acidente de trabalho; se, no entanto, o chute tivesse sido dado ao léu, o pai do “vândalo” tinha que pagar o vidro.
     Quanto a mim, era um jogador médio de bolinha de gude. Em algumas modalidades de jogos que envolviam bolinhas de vidro eu me saía bem; na mais comum, aquela em que se desenha uma circunferência no chão e se disputa as bolinhas que estão dentro, não era dos melhores. Pra não ficar logo com o saquinho vazio, procurava jogar só “às brincas”. Às vezes, no meio de um desses jogos, passava um guri mais velho, mais forte e mau caráter e recolhia as bolinhas com a maior cara de pau, dizendo simplesmente: “— Fiscal de bolinhas!”. Botava-as no bolso e nos deixava com cara de choro.
     Alguns dos guris maiores chamavam de “beti” o jogo de taco. Fui pesquisar e descobri que o jogo pode ter-se originado do cricket e que o nome bets (e não beti) seria uma homenagem à rainha Elizabeth I. Pois bem, bets ou taco, nesse eu era bom. Conta uma lenda daquela época que certa vez, durante um jogo de taco, a bola foi picando na direção do Betão, o mais forte dos guris maiores, que descia a rua com um guarda-chuva na mão. Ao ver a bola picando, apesar de não estar jogando, não teve dúvidas, meteu-lhe uma tacada com o cabo do guarda-chuva, mandando-a até os trilhos dos bondes, que ficavam a uns 150 metros rua abaixo.
     Depois da minha adolescência, nunca mais vi jogarem cela, nem os sucessores da minha turma da pracinha. O jogo de cela consistia em fazer no chão um buraco para cada participante: se fossem cinco jogadores, cinco buracos seriam feitos, um após o outro, em linha reta. A ordem dos buracos era sorteada. Uma bola de tênis era largada em direção aos buracos. O jogador do buraco em que ela parasse deveria pegá-la e atirá-la em direção a algum dos oponentes. Se acertasse, a vítima continuaria a perseguição aos outros; se errasse, ganhava um “filho”, representado por um pauzinho de fósforo colocado no buraco correspondente. E assim por diante, até um dos participantes acumular três filhos. Este, então, deveria ir para a cela, que era um muro de uma casa qualquer em frente à pracinha. Tinha que ficar encostado no muro, de costas para a rua, com a cabeça abaixada em direção ao peito e os braços para trás e por sobre ela, protegendo-a. Os demais jogadores davam cinco boladas cada um nas costas do perdedor. Não raro o perdedor saía chorando e com marcas redondas e vermelhas nas costas. Joguinho inocente, né?
     Vôlei era raro acontecer por causa da dificuldade em se afixar a rede. Quando tinha, nem me arriscava a jogar. Em futebol eu era péssimo. Com perdão pela incorreção: muito péssimo! Na hora do par ou ímpar eu era sempre o último a ser escolhido, o que sobrava. Se o número de participantes era ímpar, pra contrabalançar me botavam no time mais fraco. E, mesmo assim, no gol. Claro, eu tinha chance de jogar na linha, como todo mundo. A cada gol sofrido havia rodízio: o goleiro ia pra linha e um da linha ia pro gol. Quando estava na linha, entretanto, pouco tocava na bola, pois não a passavam pra mim. Eu me contentava em correr atrás do bolo de guris que corria atrás da bola. Desconfio que fui eu que inventei o chute de três dedos, a famosa “trivela”. Quando ocasionalmente a bola sobrava pra mim eu a chutava com toda força tentando acertar o gol, mas ela ia pra lateral direita. E eu fazia isso olhando pra esquerda... Desastre total.
     Quando tinha 16 anos, desisti pra sempre do futebol que nunca me quis. Montei uma banda em que eu era o baterista (leia: The Old Stones). Ensaiava na garagem da minha casa, nos sábados à tarde, quando o resto da turma corria atrás da bola, na pracinha em frente.
     A pracinha continua lá e ganhou um nome: Praça Monsenhor André Mascarello, que foi o pároco do bairro durante toda minha infância, adolescência e parte da vida adulta. Hoje, está melhorada, bem cuidada e tem até grama. De vez em quando, filhos e netos de remanescentes da minha época se reúnem e jogam futebol nela. Confira nas fotos de Isa Kolbetz, de uma geração posterior a minha, cujos pais ainda moram naquela rua.

Praça Monsenhor André Mascarello

A pracinha hoje, quase no mesmo ângulo da foto antiga

Foto de Isa Kolbetz
De cima pra baixo

Foto de Isa Kolbetz
De baixo pra cima

Foto de Isa Kolbetz
Minha ex-casa ao fundo